LIVRO: “Homens Livro”,
de Bento Ramires, Carlos Marta e Rui Guedes
Coordenação | Patrícia Carreiro
Ed. Letras Lavadas Edições, Agosto de 2022
“Sei que gostas desta tua Biblioteca Itinerante, pois de outro modo não receberias das mãos do teu amigo mais velho, que sou eu, esta carta que contém um pedido que, estou certo, não deixarás de satisfazer.
Queres saber o que te peço?
Que mesmo na meia folha que sobra desta carta ou em qualquer outro pedaço de papel, me escrevas como a um teu amigo a quem falasses da biblioteca, dos livros que tens lido, daqueles de que mais tens gostado, do que tens aprendido com eles e de tudo o mais.
E, se tiveres algumas perguntas a fazer, agradeço-te muito que faças, pois a todas elas eu procurarei responder da melhor maneira que me for possível.”
Escolhi este pequeno excerto a título de lançamento da recensão literária a “Homens Livro”, como poderia ter escolhido tantos outros, de tal forma eles se encontram carregados de afecto, dedicação, generosidade e altruísmo. É tocante a forma como o livro se abre às mais doces memórias, aquelas que conectam os conhecimentos e saberes adquiridos ao longo da vida com o breve contacto semanal ou mensal com o bibliotecário do serviço itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian. É desses momentos privilegiados da carrinha mágica como um prolongamento do largo da aldeia, das amizades feitas e consolidadas à roda dos livros, das brincadeiras e dos risos das crianças, que “Homens Livro” nos fala, quer através de magníficas fotografias e documentos provenientes, na sua maioria, das colecções particulares de António Carmelo, Bento Ramires e Carlos Marta, quer por intermédio de um conjunto de textos que incluem um conto muito belo de Rui Guedes, três entrevistas com ex-bibliotecários itinerantes e um verdadeiro documento, fruto da iniciativa de António Carmelo nos idos de 1964, que nos oferece uma panorâmica sobre a actividade destes equipamentos e seu impacto junto dos leitores.
“Apelo à memória individual e colectiva de um período marcante da última metade do século anterior”, este livro de Bento Ramires, Carlos Marta e Rui Guedes, com coordenação de Patrícia Carreiro, é uma extraordinária forma de celebrar o sexagésimo quinto aniversário da entrada em funcionamento das Bibliotecas Itinerantes Gulbenkian. Ligada à base estatutária da própria Fundação, empenhada em combater o analfabetismo e promover o saber e a educação, a criação deste serviço revelou-se um sucesso, suscitando uma entusiástica adesão por parte das populações. Em cerca de quarenta anos de actividade, os números falam por si: Foram adquiridos quase nove milhões de livros e outros documentos em diversos suportes, o numero de atendimentos aos leitores quedou-se próximo dos cinquenta e sete milhões e o número de obras requisitadas superou os cento e setenta e um milhões. De sublinhar, como refere Isabel Mota, Presidente do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian, na introdução que faz a esta obra, “o papel indutor da leitura desempenhado pelos seus encarregados, em contacto permanente e directo com as populações, e a quem coube desde sempre a especial responsabilidade de uma ligação activa e fecunda entre o universo dos leitores e o dos livros. A eles se deve uma acção de valor incalculável no desenvolvimento do gosto pela leitura em Portugal.”
Ao ler “Homens Livro”, não posso deixar de recordar a minha própria experiência, menino ainda, quando acompanhava as minhas tias, nos anos da sua juventude, à carrinha da Gulbenkian para devolver os livros requisitados e escolher um conjunto de novos livros. Desses momentos na pequena aldeia de Cacia, sob os fumos acres da Fábrica de Celulose, guardo as memórias dos irmãos Eduardo Alexandre Seixas e Joaquim Seixas no papel de bibliotecários atenciosos e disponíveis, das filas de rapazes e de raparigas que se formavam à porta da carrinha, do mundo mágico que era aquele interior de prateleiras forradas de livros mas, sobretudo, da emoção com que, no regresso a casa, se anteviam as maiores aventuras e os mais venturosos romances de amor nos novos livros requisitados. Reviver este pequeno pedaço da minha história de menino através do magnífico conjunto de imagens que percorrem o livro de lés a lés e poder juntar-lhes os testemunhos de António Ferreira, Raimundo Figueira e Rosélio Reis é um verdadeiro privilégio. Das jovens cujos namorados as proibiam de requisitar livros, aos livros que tinham um lugar “reservado” na estante antes do 25 de Abril, dos padres que desaconselhavam a frequência daquele serviço às peripécias técnicas com as icónicas Citroën, “Homens Livro” carrega todo um manancial de histórias e memórias que nos dão a ver o país que fomos e somos. Um livro maior, repositório de páginas brilhantes da promoção do saber num país inculto, que importa reter.
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