“Não há maior agonia do que guardar a história não contada dentro de nós”. As palavras são de Maya Angelou e ilustram, na perfeição, o projecto “Ilhéus”, da fotógrafa Moira Forjaz, conjunto de retratos de habitantes da Ilha de Moçambique cujos rostos e corpos se sobrepõem à própria História: Ilhéus que deixaram a fotógrafa entrar na sua intimidade, contando-lhe as suas vidas na primeira pessoa. Para muitos terá sido a primeira vez que alguém lhes pediu para falarem de si, dos seus sonhos, da vida que levaram e daquela que desejariam ter levado. Das suas frustrações, das decepções e das suas satisfações. Da sua vida. Vestiram as roupas melhores, as mulheres da Ilha. As capulanas mais caprichadas, tiradas do baú para a ocasião (há sempre uma capulana para qualquer ocasião…) e falam tanto até que finalmente chega o clique que as imortaliza e lhes rende a justiça de um anonimato forçado pela história.
Espreitemos com atenção a imagem desta mulher de pé, encostada a uma parede mal caiada. A estranha maquilhagem que lhe cobre o rosto - o branco do pó de m’siro a vincar mais do que a esconder as fundas rugas - confere ao olhar uma inesperada profundidade. Ergue na mão um espelho partido, ao mesmo tempo que posa para a objetiva enquanto controla com um gesto gracioso o lenço que lhe envolve a cabeça. As unhas pintadas, os brincos e colares, o anel em filigrana indo-portuguesa, o lenço, o quimão típico da tradição macúa, de cores garridas que contrastam com o cinzento da parede e o azul desbotado de uma porta, compõem um quadro surrealista. E, contudo, esta mulher é bem real. Como muitas outras e outros, é parte de um projeto que celebra a vida e tudo o que está dentro de um único grande céu. Um projecto que retira do anonimato as pessoas, que diz que todos têm direito ao seu nome, seja ele Janina Momade ou Amina Ramane, Joana Esmael Taibo ou Abdala Amisse, Ancha Abuso Suarimo ou Agira Abacar, Maria da Conceição Amade ou Cazuela Charama.
Falar de Moira Forjaz é falar de um trajecto que a fez deixar, nos anos 60 do século passado, o estreito enclave branco de Bulawayo, na ex-Rodésia, rumo a Joanesburgo. Consigo transportava o sonho de estudar arte e um casaco de peles que viria a trocar pela sua primeira máquina fotográfica. Depois veio a luta contra o colonialismo e os encontros com Hillary Hamburger, Joe Slovo ou David Goldblatt, autor de algumas das mais poderosas imagens do apartheid. Vieram as detenções e o subsequente julgamento da liderança do ANC que mudou a história da África do Sul. E veio Moçambique, onde encontrou o seu futuro marido, o arquiteto José Forjaz, e onde desenvolveu a sua habilidade, tornando-se uma das fotógrafas oficiais do Presidente Samora Machel. O engajamento político e social passou pela fotografia e pelo cinema (trabalhou com Godard), registando gentes, lutas, música, resgatando a vida com a sua miséria e a sua nobreza. É nesse todo que esta exposição se enquadra, com os ilhéus e o seu nome postos em evidência ao longo das ruelas, nas suas casas, nos degraus, nas esteiras da Ilha de Moçambique banhada, rodeada, lambida, alimentada, amada, por vezes mal-amada, pelo Oceano Índico. “Ilhéus” é um dos momentos preciosos da presente edição dos Encontros da Imagem de Braga e pode ser visto no Mira Fórum.
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