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sábado, 1 de outubro de 2022

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #64



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #64
Escola de Artes e Ofícios
90 Minutos | Maiores de 14 anos
29 Set 2020 | qui | 21:30


Após a pausa estival, o Shortcutz Ovar regressou em grande ao convívio dos amantes de cinema, em especial daquele em versão curta. À entrada para a recta final, a sexta temporada do certame trouxe consigo três propostas do maior interesse, com linguagens estéticas e narrativas distintas e, contudo, suficientemente próximas para que, no seu conjunto, o público pudesse apreciá-las como uma unidade só. Foi como se de um filme em três episódios se tratasse, ligados entre si pela visão aguda da interioridade e do abandono, pelas assimetrias entre os esquecidos e aqueles que cavalgam a onda tecnológica, pela estranheza dos lugares outrora repletos de gente e de súbito desertificados, pelas memórias de um passado que se insinua e reforça as incertezas do que está para vir. Um “filme maior” que começa por nos revelar o céu e que vai descendo, descendo, até mergulhar no “inferno” do segredo, da culpa, do medo e da cobardia. Mérito, uma vez mais, de um desenho de programação particularmente inteligente, explorando essa relação (possível) de continuidade e oferecendo ao espectador um alargado leque de leituras, qual delas a mais estimulante.

De Francisca Alarcão vimos, a abrir a sessão, “Para Outra Maré”. Com o tumulto do mar e do vento em pano de fundo, este fotofilme observa, de forma cuidada e sensível, a paisagem de Moledo, com os seus areais imensos, a Ínsua em frente e o Monte de Santa Tecla, imponente, do outro lado da fronteira, ao mesmo tempo que nos fala dos comboios a passar na linha, das escorregadias rochas cobertas de limos, dos gatos a caminho do restaurante dos croquetes, dos pés que pisam a caruma dos pinheiros ou chapinham nas poças deixadas pela maré vaza. A realizadora, porém, vai mais longe e, num exercício fortemente intimista, pergunta-se “porque não se repetem os bons momentos”. É tempo de revisitar a casa e a família, os sustos e os tempos felizes, o irmão Lourenço, os pais e os avós, um lenço tingido de sangue à volta de um joelho ou uma carta que só agora é entregue, muitos anos depois de ter sido escrita. Realizado em contexto de escola, no âmbito da cadeira de Cinema Documental da Escola Superior de Teatro e Cinema, “Para Outra Maré” é um filme hábil a mostrar aquilo que não é, um filme distendido só na aparência, mas cuja narrativa remete para a enorme força e energia que o anima. Como o mar. Como o céu.

“O Que Resta” foi a segunda curta da noite, levando-nos ao encontro de Emilio, um octogenário que vive sozinho na sua quinta abandonada, tendo por companhia apenas um carneiro. A decisão de vender o animal não terá sido tomada de ânimo leve, mas a concretização do negócio irá revelar-se um problema particularmente difícil de resolver. Primeira curta-metragem de ficção de Daniel Soares, “O Que Resta” serve o propósito de evidenciar o enorme fosso entre o litoral e o interior, dando a ver um país a duas velocidades (o contraste entre os carros e camiões que percorrem a auto-estrada a grande velocidade e, ali ao lado, o Toyota Starlet vermelho de Emílio a subir um caminho empoeirado, é dos melhores planos que vi em cinema até hoje). Sem pretender ser um filme de denúncia, há em “O que Resta” o olhar magoado de quem percebe que, na voragem deste novo tempo, os menos aptos parecem estar a mais. O humor que percorre o filme torna a mensagem mais amarga ainda e, depois, há Emílio, fabuloso Carlos Cairrão, personagem inigualável que se entrega ao filme de corpo e alma, contribuindo decisivamente para fazer dele um exercício de cinema da maior qualidade.

Das grandes paisagens serranas para o interior de um estúdio de rádio, “O Lobo Solitário” trouxe à sala do espande da Escola de Artes e Ofícios a emoção e o suspense do grande cinema. Esta história de um locutor de rádio que, pela noite fora, modera um programa assente nas emoções dos ouvintes, acaba por mergulhar o espectador numa história que redunda em tragédia e da qual emerge o fantasma da pedofilia. Sem rodeios, Filipe Raposo parte do espírito das rádios locais dos anos 80 e do inesquecível “Quando o Telefone Toca” para nos dar a ver uma comunidade de ouvintes da rádio dos nossos dias, que às ondas do éter acrescenta a imagem do “streaming” e a explosiva possibilidade de interagir através das redes sociais. É a rádio que se expande, com todas as vantagens que isso acarreta, mas também com todos os seus inconvenientes. Dando a sensação de ser um plano-sequência único, o filme vive da criação de um ambiente concentracionário, reforçado pela circularidade do movimento de câmara, no qual Adriano Luz, no papel do radialista Vítor Lobo, mostra sentir-se como peixe na água. O desempenho brilhante do actor encontra paralelo no argumento, também da autoria de Filipe Melo, daí resultando um filme envolvente, profundamente perturbador e que deixa no espectador a dúvida quanto à verdade dos factos pronunciados. Uma dúvida que não se apaga, antes se reforça, levando cada um a interrogar-se sobre as suas próprias máscaras. A encerrar uma grande noite, um filme enorme.

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