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quinta-feira, 22 de setembro de 2022

LIVRO: "Cadernos da Água"



LIVRO: “Cadernos da Água”, 
de João Reis 
Edição | Lúcia Pinho e Melo
Ed. Quetzal Editores, Março de 2022


“Estou sempre a partir o bico ao lápis, isto quando a caligrafia não se torna quase ininteligível, porque não quero aguçá-lo demasiado. Vou tentar arranjar outra caneta. Tenho sempre a sensação de que há muitas coisas que te quero dizer, milhentas coisas que não vês nem ouves nem cheiras nem sentes, e que, no entanto, me esqueço sempre de as escrever, que, ao sentar-me alguns minutos para escrever, me esqueço do que vou dizer ou penso demasiado para não me enganar ao escrever e não ter de riscar o papel, porque tenho de poupar o caderno. E, em simultâneo, tudo o que escrevo e conto parece irrelevante, não servirá de nada chegada a altura de leres tudo isto.”

“Defraudado. Foi assim que me senti no virar de cada página do mais recente romance de João Reis. Um sentimento que me levou a reflectir nos porquês de querer tanto ler um livro em detrimento de outro. Neste caso, o reencontro com a voz literária do autor justificava a expectativa. Uma voz que aprendi a identificar, a admirar e que me leva a reconhecer que ele é, a par de uns quantos (poucos) escritores, daqueles que nomearia, sem pestanejar, se interrogado sobre os novos autores em língua portuguesa que mais e melhor se afirmam no topo das minhas preferências. Senhor de uma voz única e inconfundível, sabe ser tocante no retrato que faz das peculiaridades do ser humano, carregando de lúcida ironia as falhas e contradições, a irrefutável singularidade, as doces fantasias. Foi ao encontro dessa voz que embarquei nesta sua nova obra e foi essa mesma voz que teimou em fazer-se ausente ao longo de toda a viagem. Dou de barato o facto de ser eu o “culpado” da situação, quem sabe por uma deficiente gestão das minhas expectativas. Mas isso não apaga o sentimento de desencanto, antes o reforça.”

Há uma explicação para o facto de todo o parágrafo anterior se encontrar entre aspas: Foi escrito “a quente”, no dia imediato ao virar da última página do livro, quase há cinco meses. Decidi não avançar com o texto, assumir a “culpa” e ficar-me por ali. João Reis seria merecedor da minha recensão, mas não “este” João Reis. Novos dados, porém, obrigam-me a desfazer o silêncio e a tornar aos “Cadernos da Água”. Afinal, as minhas dúvidas quanto à voz autoral tinham toda a razão de ser. João Reis, o autor, sendo-o, não é. Passo a explicar, de forma muito resumida: terminado o livro, João Reis enviou-o a quatro editoras. Fê-lo sob pseudónimo e todas acreditaram que o autor era… uma autora. A revelação foi feita pelo próprio na mesa de encerramento do Festival Literário de Ovar, no passado domingo, e devidamente justificada por motivos que, de forma genérica, terão a ver com o ajustamento das políticas editoriais ao gosto reinante de um público que, cada vez mais, lê menos. Em suma, voluntariamente, João Reis mudou de “voz”. Por isso não o encontrei nos seus “Cadernos”. Por isso falei de desencanto.”

Uma nota, porém, impõe-se. O facto deste João Reis não ser o João Reis cuja voz me vem deliciando desde que a descobri em “A Devastação do Silêncio”, não faz dele um João Reis pior. Se os meios justificam os fins, isto é, se a melhor forma de fazer passar a mensagem que o livro encerra implicaria o “mudar de voz”, então ao autor é devida uma respeitosa vénia. Porque o que nos traz nos “Cadernos da Água” é poderosíssimo. A acção centra-se num futuro muito próximo e faz-nos acompanhar o drama da falta de água que leva as pessoas a deixarem tudo para trás e a refugiarem-se nos países onde ela, embora escassa, não se esgotou ainda. Ao grito de alerta para a necessidade de respeitar um bem essencial à vida que se vai tornando cada vez mais raro, está o dedo apontado àqueles que, vestidos de preconceitos e de xenofobia, encaram os refugiados e migrantes como uma ameaça, não percebendo que na roleta-russa da vida é às suas próprias cabeças que a arma está apontada. Na profunda crise societária, humanitária e climática em que estamos mergulhados, “Cadernos da Água” adquire um tom profético. Tal como “Hífen”, de Patrícia Portela, ou “Ecologia”, de Joana Bértholo, é um livro que cruza realidade e ficção num cenário distópico. E, tal como estes, é de leitura obrigatória.

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