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quarta-feira, 21 de setembro de 2022

CONCERTO: "Horas Vazias" | Camané



CONCERTO: “Horas Vazias”,
de Camané
Casa da Cultura de Ílhavo
09 Set 2022 | sex | 21:30 


O concerto de Camané chega ao fim após um longo e generoso aplauso. Saio da sala ainda a trautear o belíssimo “Havemos de Nos Ver Outra Vez”, enquanto vou pensando nas incidências que marcaram hora e meia do melhor fado: Na senhora que pedia que o fadista cantasse “O Xaile de minha Mãe”, na “branca” que lhe passou nessa “Noite Transfigurada”, na revisitação de poemas e de músicas que sabemos serem parte do nosso código genético, na riqueza e na beleza que habitam o próprio fado. Tenho a sensação que poderia escutar Camané, repetidamente, sem me cansar. Houvesse programa para uma semana seguida e eu estaria lá, religiosamente, noite após noite, a ouvi-lo. Porque um concerto de Camané nunca é igual ao anterior. Porque quando pomos tudo de nós naquilo que fazemos, é a nossa fragilidade e vulnerabilidade que emerge, o nosso lado humano que expomos, feito de forças e de muitas fraquezas. É nisto que Camané se distingue dos restantes fadistas. Nesta intensidade com que remexe no mais fundo da alma, nesta entrega incondicional ao fado, na intimidade que gera e partilha com o público, na forma como o arrasta nessa vaga de sentimentos profundos, capazes de lhe pôr no peito um aperto e nos olhos um mar de lágrimas.

Intitulado “Horas Vazias”, o concerto serviu para apresentar o nono álbum de estúdio do fadista, o primeiro sem José Mário Branco. Dos dezasseis temas que compõem este seu mais recente trabalho, Camané cantou apenas quatro. Abriu o concerto com “Que Flor Se Abre No Peito”, com letra e música de Pedro Abrunhosa e fechou-o com “Havemos de Nos Ver Outra Vez”, música e poema de Teresa Muge e que nos traz à memória o trabalho da sua irmã Amélia, esse maravilhoso “Taco-a-Taco”, de 1998. Pelo meio cantou o já referido “Noite Transfigurada”, tema composto por Jorge Palma, e ainda “Marcha de Alcântara”, de Vitorino Salomé. Rodeado de gente tão ilustre, na voz poemas tão belos, Camané deve ter sentido, como nunca, o dilema de construir um alinhamento que promovesse o seu mais recente trabalho, mas que, ao mesmo tempo, não deixasse de fora os seus temas mais icónicos. Com tanto para cantar e contar, acabou por dar a primazia a um conjunto de registos que sabe que o público, mais do que pedir, exige. Desta forma, os seus álbuns anteriores foram largamente revisitados em temas como “Quadras”, “Abandono”, “Ela Tinha Uma Amiga”, “Sei de Um Rio” ou “Guerra das Rosas” e, com eles, os poemas de Fernando Pessoa, David Mourão Ferreira, Manuela de Freitas, Pedro Homem de Mello ou José Mário Branco.

Sofreado, contido, o concerto foi, em si mesmo, uma homenagem ao fado. De uma sobriedade exemplar, Camané ofereceu ao ambiente musical o protagonismo, a sua voz e a sua presença sendo apenas dois ingredientes mais de um momento de grande intimidade e emoção. Para tal muito contribuíram, também, a guitarra portuguesa de José Manuel Neto, a viola de Carlos Manuel Proença e o contrabaixo de Paulo Paz. Voltando a Camané, aquilo que mais admiro nele é a sua forma de viver e sentir o fado. Deixa-se estar ali, em plano recuado, fazendo com que a grande música se afirme na sua essência e se eleve ao patamar da arte mais funda. Não é homem de estar em palco a bater palminhas (e nisto é igual a um Carlos do Carmo, por exemplo), mas não desdenha da possibilidade de estilizar um fado, de o cunhar com as nuances da sua voz e o jeito da sua cadência, de pôr nele a sua assinatura. É um fadista para quem a tradição não é letra morta. O fado é o seu mundo e faz questão de tratá-lo bem, de o tornar cada vez melhor. Foram minutos muito cheios aqueles que sobraram destas “Horas Vazias”. Embora as memórias permaneçam vivas, está mais vivo que nunca o desejo do reencontro. Havemos de nos ver outra vez!

[Foto: Camané - Página oficial | https://www.facebook.com/CamaneOficial]

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