Domingo, dez da manhã. O amontoado de nuvens no céu não impede o sol de brilhar e adivinha-se um dia de muito calor. A caminho de Ribeira de Aldeia, o verde dos milheirais preenche o olhar. No centro de Pardilhó, são muitos aqueles que gozam a sombra do jardim público e põem a conversa em dia. Estamos no último dia do ESTAU – Estarreja Arte Urbana e importa apreciar devidamente o resultado final desta quinta edição. Vou ao encontro de Bordalo II, um dos mais conceituados artistas a nível mundial, um génio a transformar o desperdício em arte. A expectativa não sai gorada, já que a visão da peça não poderia ser mais impactante. Verdadeiro ex-libris da fauna da Ria, majestosa no seu voo, uma Águia-sapeira repousa agora numa parede lateral do Centro de Interpretação de Construção Naval. Bico curvo, olho vivo, parece espreitar a presa que, incauta, ignora a sua presença. É inevitável fazer a ponte entre esta Águia-sapeira e o Guarda-rios que, desde 2015, embeleza parte de uma parede do Pavilhão Multiusos de Estarreja e que, nesse ano, alcançou o 9º lugar entre os 100 melhores murais de Arte Urbana do mundo. O entusiasmo em torno da peça foi determinante para o lançamento, no ano seguinte, da primeira edição do ESTAU. O resto, é o que se sabe. A cidade possui hoje um espólio invejável de mais de quatro dezenas de obras de extraordinária qualidade e é, indiscutivelmente, um dos grandes museus de Arte Urbana a céu aberto em Portugal.
A visita prossegue e o ponto de paragem seguinte é um tanque industrial da empresa Bondalti, no Parque Químico de Estarreja. Intervencionada pelo brasileiro Thiago Mazza, a peça não se encontra ainda finalizada, mas não deixa de encantar pela cor e vida que dela se desprendem, rasgando o cinzentismo das complexas estruturas industriais , com as suas torres fumegantes a perder de vista. Embora não lhe tenha atribuído um título, Thiago diz-me que poderia muito bem ser “Colecta”, remetendo para o trabalho de recolha de plantas que povoam o vasto espaço da BioRia. Da dedaleira à madressilva, da soagem aos bons-dias ou ao lúpulo, são as flores, com as suas cores, que se destacam nesta peça, ao mesmo tempo chamando a nossa atenção para factores como a sustentabilidade e o equilíbrio num mundo a viver uma gravíssima crise ambiental. Profundamente naturalista é também a peça que Daniela Guerreiro projectou numa parede de Salreu, uma das freguesias a sul do Concelho. Ainda por finalizar e, ao que julgo saber, sem nome, o trabalho da artista mostra-nos umas mãos com as veias salientes, segurando um punhado de plantas, onde se destaca o arroz. Serão mãos de mulher, certamente idosa, os pés enfiados na terra húmida, o corpo vergado no árduo labor de uma vida a retirar dali o sustento. Um mural que é um gesto de amor à terra e àqueles que a trabalham.
Um pouco mais a sul, na vizinha freguesia de Canelas, é a marca do projecto “Ruído”, dos artistas Frederico Draw e Rodrigo Contra, que podemos apreciar. A peça está concluída e é uma homenagem a um dilecto filho da terra, Francisco Joaquim Bingre, aqui nascido em 09 de Junho de 1763. Poeta arcadiano, muito influenciado pelo pré-romantismo, Francisco Bingre compôs uma vasta obra distribuída, entre outros, por sonetos, odes, sátiras, madrigais e hinos. Dos colegas literários recebeu o cognome de "Cisne do Vouga" e viria a ser alvo de homenagem daquela que é hoje a mais antiga colectividade do Concelho de Estarreja, a Banda Bingre Canelense, que desde 1932 se designa desta forma. São estes os elementos constantes no mural, com particular destaque para a interpretação da figura de Francisco Bingre e para a forma como o resultado se integra na composição. Mas, também, para os cisnes, muito belos, que vieram acrescentar cor à reduzida paleta que caracteriza os “Ruído”. Com o calor a apertar entramos na cidade. Junto à Estação de Caminhos de Ferro espera-nos um mural que recria o casario da zona, os comboios que percorrem a via férrea, os campos de cultivo que se abrem do outro lado da linha e se estendem até à Ria, a fauna e a flora características. Sob a orientação da artista Pitanga, os alunos vencedores do projeto “Muros Com Vida – Eco-Escolas”, da Associação Bandeira Azul da Europa, desenvolveram um trabalho que é, todo ele, uma explosão de cor e alegria, ganhando um novo significado através deste olhar terno e sensível sobre um território impar, que fazemos questão de preservar e valorizar.
Antes de visitarmos as duas últimas peças, uma palavra para Mário Afonso e o seu “Roteiro na cidade”. Distribuído por seis “estações”, o percurso está construído com base num conjunto de imagens do Arquivo Municipal que, depois de serem transformadas em cianotipias, foram impressas em azulejo. Um roteiro que remete para o espaço da memória, convocando o olhar entre o antes e o depois e abrindo portas à reflexão sobre as transformações às quais, tal como o espaço envolvente, vamos sendo sujeitos. Estarreja é indissociável do seu Carnaval e é esse o tema abordado por Mariana Duarte Santos num mural de grandes dimensões, bem no centro da cidade. Reproduzindo fielmente um conjunto de fotografias do Arquivo Municipal, a artista trabalha igualmente a memória, lembrando outros tempos e outros “carnavais”. A composição revela-se particularmente feliz e na parede, como se estivessem sobre uma mesa, as imagens pedem que as olhemos atentamente, que as sintamos, que falemos delas e com elas. Por fim, Pantónio e a ingrata tarefa de resumir este seu trabalho em duas ou três frases. É quase redundante dizer que o seu traço característico se mostra mais depurado que nunca, que é único o equilíbrio que resulta da interação da pintura com os elementos envolventes ou que a simbiose entre animais e plantas, entre orgânico e inorgânico, adquire nesta sua obra um significado de grandeza maior. O melhor é cada um de nós espreitar a peça, deixar-se sugar por ela, encher-se de vida e ser parte de um mundo onde reina a harmonia, a esperança e a felicidade. Vão por mim!
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