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domingo, 18 de setembro de 2022

DANÇA CONTEMPORÂNEA: "Ensaio Sobre a Cegueira"



DANÇA CONTEMPORÂNEA: “Ensaio Sobre a Cegueira”
Direcção, Coreografia | Nélia Pinheiro
Interpretação | Fábio Simões, Gonçalo Almeida Andrade, Nélia Pinheiro
Ambiente Sonoro | Gonçalo Almeida Andrade
Figurinos | José António Tenente
Cenografia | Nélia Pinheiro, Rafael Leitão
Desenho de Luz | Nuno Meira
Produção | Companhia de Dança Contemporânea de Évora
Festival Literário de Ovar 2022
Centro de Arte de Ovar
14 Set 2022 | qua | 22:30 


“ (…) Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.” Depois do livro, depois da peça de teatro apresentada recentemente no Teatro Nacional de S. João, volto de novo a José Saramago e ao seu “Ensaio Sobre a Cegueira”, desta vez numa viagem nos passos, nos gestos e no corpo da dança. Produzida pela Companhia de Dança Contemporânea de Évora, com direcção e coreografia de Nélia Pinheiro, este espectáculo é o culminar de um percurso de experimentação coreográfica em torno do comportamento humano em situações de crise e violência. Em cena, a redução da humanidade às necessidades e afetos mais básicos, um progressivo obscurecimento e correspondente iluminação das qualidades e dos terrores do homem, serve de guião e determina a natureza comportamental dos intérpretes. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”

Com um formato próximo da instalação artística, a criação de Nélia Pinheiro tem um lado experimentalista muito forte, quer no que toca aos aspectos coreográficos como às soluções de construção e povoamento do espaço cénico. Grande parte da acção decorre no interior de uma estrutura - que tanto pode ser uma casa como o próprio mundo -, revestida de plástico, cuja relativa opacidade rouba ao espectador a nitidez (a lucidez?), colocando-o no lugar do cego e imergindo-o no drama. Na dimensão metafórica do espaço e do movimento, como na dissociação convocada pelo dentro e o fora, o opaco e o nítido, a luz e a escuridão, o preto e o branco, o deitado e o de pé, a proximidade e o distanciamento, o ser homem e o ser mulher, abre-se um vasto conjunto de questões que entroncam na ética, no amor ou na solidariedade. No seu propósito de inquietar, de provocar o espectador, a peça convida-nos a mergulharmos no mais fundo de nós, em busca de respostas aos porquês desta “cegueira branca”, cívica e societária, que nos invade e compele o nosso quotidiano a disfarçar os mais torpes e rudes instintos.

Nesse olhar frio e preciso sobre a condição humana, quando levada ao limite do inominável, este abraço a Saramago chama a nossa atenção para a “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. Em cena, mas fora dela, escutamos a leitura de excertos seleccionados da obra do escritor. As palavras do livro oferecem ao espectador as pistas necessárias à compreensão da peça, enriquecendo-a com as diferentes perspectivas que a dança e o movimento vão abrindo. O tempo avança, o nó aperta-se e todos nos damos conta do quanto a ficção e a realidade estão cada vez mais próximas. Mostrar respeito, cuidado ou atenção pelo semelhante tornou-se uma excepção. Aquilo que outrora, de modo mais natural ou mais forçado, constituía o cimento de uma vida gregária, e no geral harmoniosa, faz cada vez menos sentido. O final é feliz. [“A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava.”] Mas a inquietação, essa, permanece. Mais viva que nunca.

[Foto: Ovar Cultura | https://www.facebook.com/ovarcultura]

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