LIVRO: “Vozes de Chernobyl: História de um Desastre Nuclear”,
de Svetlana Alexievich
Texto original | “Tchernobylskaia Molitva” (2013)
Tradução | Galina Mitrakhovich
Prefácio | Paulo Moura
Ed. Elsinore, Fevereiro de 2016 (5ª edição, Julho de 2020)
“De quem tenho mais pena é da gente das aldeias, pois sofreu sem ter culpa, como as crianças. Porque Chernobyl não foi inventado por um camponês que tem a sua própria relação com a Natureza - confiante, não predatória -, a mesma de há cem anos, ou mil. Como um desígnio divino… E eles não compreendiam o que tinha acontecido, queriam acreditar nos cientistas, em qualquer pessoa letrada, como num sacerdote. Mas ouviam repetidamente: ‘Está tudo bem. Não tem nada de mal. É só lavar as mãos antes de comer…’ Percebi, não de imediato, mas passados alguns anos, que estivemos todos envolvidos… No crime…”
Faço um esforço de memória e não me recordo de um livro que me tenha causado uma tão viva impressão logo às primeiras páginas como este “Vozes de Chernobyl”. O seu começo é avassalador. É com os olhos marejados de lágrimas que acompanho o drama de um jovem casal, ele bombeiro na linha da frente do combate às chamas que deflagraram na central nuclear às primeiras horas do dia 26 de Abril de 1986, ela seguindo-o até Moscovo, grávida de seis meses, assistindo-o dedicadamente em cada um dos poucos momentos que lhe restam de vida. Não refeito da comoção, capítulo após capítulo, vou escutando os monólogos dos habitantes das aldeias da Zona, políticos, cientistas, soldados, sobreviventes, familiares e amigos dos que morreram, pessoas de todas as idades, muitas dela idosas, gente que sofreu os horrores da II Guerra Mundial e das purgas estalinistas e que vive agora esta “morte branca”, silenciosa, impiedosa, que pesa sobre todos com a força do inelutável. A perplexidade, a raiva e a dor tomam conta de mim. Não consigo deixar de me interrogar: Como é que foi possível?
São múltiplas as questões que atravessam “Vozes de Chernobyl: História de um Desastre Nuclear”. Em plena Guerra Fria, a atenção foi desviada da grande questão de fundo, o desastre nuclear e os seus efeitos, para as teorias da conspiração e para os inimigos do Kremlin. Com a Pátria e tudo aquilo que supostamente representa em jogo, o secretismo e a desinformação pôs a nu o desprezo pelas vidas humanas e a desconfiança e alheamento em relação aos cientistas e à própria ciência. Os relatos falam da requisição de oitocentos mil recrutas e liquidadores para mitigar os efeitos da tragédia, mas não esquecem a construção da própria central, da precariedade dos materiais utilizados à rapidez da sua entrada em funcionamento. Palavras como “patriotismo” e “heroísmo” misturam-se com “espanto”, “horror” e “crime”. Sob uma nuvem radioactiva, a vida prossegue o seu curso normal. Entretanto, objectos saqueados vendem-se em feiras, expõem-se em museus, enfeitam as nossas salas. A radiação que emitem ultrapassa em centenas de vezes os valores de segurança.
Influenciada pela grande tradição oral russa, Svetlana Alexievich baseou este seu livro em centenas de conversas que manteve com os protagonistas do desastre de Chernobyl ao longo de dez anos de investigação no local. Desprovidas de ruminações, cronologias e contextualizações, as conversas surgem-nos depuradas, sob a forma de monólogos, divagações filosóficas que mergulham o leitor nos símbolos e mistérios de um grande país, no quão indefesa é uma pequena vida nos grandes tempos que correm e no que vai além de Kolymá, de Auschwitz e do Holocausto. Como refere Paulo Moura no prefácio, “a eficácia narrativa é assustadora”. Das partes para o todo, o livro assenta na verdade dos testemunhos, fazendo de cada leitor um chernobyliano mais. Mas as coisas não se ficam por aqui: Numa altura em que se verifica uma situação de guerra na Europa, “Vozes de Chernobyl: História de um Desastre Nuclear” adquire uma nova dimensão e significado. A opressão, o desrespeito e a monstruosidade que rodearam Chernobyl em 1986, são as mesmas que se abatem sobre a Ucrânia desde o passado dia 24 de fevereiro com a invasão militar russa em larga escala. Os disfarces voltaram a cair. Nada mais há a esconder.
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