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sábado, 16 de abril de 2022

LIVRO: "Fantasia Para Dois Coronéis e Uma Piscina"



LIVRO: “Fantasia Para Dois Coronéis e Uma Piscina”,
de Mário de Carvalho
Ed. Editorial Caminho, 2003 (Março de 2004, 3ª edição)


“Vá, senhores prelados, respondam, digam aos coronéis se estão de acordo com as opiniões que, tão generosamente, nos dispensaram. Ou então, por favor, contrariem, dêem razões, expliquem-se, digam-lhes que, a não existir a Igreja, os claquistas seriam ainda muito piores, mais alarves, mais propensos à ululação, à devastação e aos bacanais homicidas. Se os coronéis estão errados convém não os deixar persistir no erro. Se estão certos, há que apoiá-los, com coragem e desassombro. E não se diga que são dois militares na reserva, já com a sua idade, que não têm influência. É falso: eles agem e manifestam-se neste livro, e se ele conseguir vender 2000 exemplares, chegará ao mesmo número de portugueses. É obra: comporta dez companhias, dois batalhões, já dá para sublevar.”

É num monte alentejano, nas imediações de Serpa, que o coronel Maciel Bernardes decide instalar-se para gozar as virtudes da reforma. Ao pé da casa, entre altos castelos, menires e cromeleques, “destoa azulínea, e sobressalta, com a transparência, a piscina, moderna e tratada a poder de fluidos caros e especiosos”. No monte vizinho, quis o acaso que se viesse instalar Amílcar Lencastre, também ele coronel e reformado, combatente de áfricas e 25 de abris. Com o inevitável copo de uísque novo na mão, carregado de pedras de gelo, os dois coronéis vão matando o tempo à beira da piscina, lembrando glórias passadas e futuras e comentando um presente onde cabem, entre outros, um xadrezista e vedor de águas que cruza as estradas do Alentejo num estafado Renault 4, um sujeito debruado de piercings que não resiste em deixar a sua “tag” na mais remota placa de trânsito e uma arrebatada Soraia Marina, cantora pimba, autora do estrondoso “Sonhei Ter Ternura a Mais” e atracção maior das festas de Grudemil.

Mais do que as expressões idiomáticas, as frases com segundo sentido, o vernáculo, os neologismos, a própria língua, o que sobressai em “Fantasia Para Dois Coronéis e Uma Piscina” é a coloquialidade, a linguagem do quotidiano despida de formalismos, desembaraçada das amarras gramaticais, fluindo de forma intensa e livre. Num sempre curioso jogo de certezas e enganos, esta é uma arte em que os portugueses são mestres e o autor mais não faz do que render, à língua e à pátria, uma significativa homenagem em forma de romance. Com enorme sentido de humor, Mário de Carvalho reproduz fielmente o linguajar da caserna entre os dois velhos coronéis cujo vernáculo castrense “costuma designar todos os objectos por cabrões sendo masculinos e putas sendo femininos”. Mas não se fica por aqui e, da beira do passeio à mesa do café, do banco de jardim ao interior de uma autocaravana, trata as conversas com igual cuidado e enlevo, sejam elas mais banais ou mais formais, o “conto do bandido” ou a “canção de engate”.

Inteligente e sensível, a escrita de Mário de Carvalho volta-se uma vez mais para aquilo que fomos e somos, neste pequeno país à beira-mar plantado. Salvaguardando a evolução tecnológica, o retrato que faz da “moderna” sociedade portuguesa do início do século XXI não é muito diferente daquele que Eça ou Ramalho Ortigão terão traçado há cem anos atrás. Com tanto de sociológico como de político, a análise de Mário de Carvalho realça as contradições em que lavra a nossa sociedade, o apego a um passado colonialista, o preconceito de classe reinante, a chico-espertice quase como um desígnio, seguramente um modo de vida para muitos. É um livro desopilante, extraordinariamente divertido, que confronta o leitor com um quotidiano dúbio e o convida a visitar uma galeria de personagens onde, eventualmente, se reconhecerá. E é, enfim, o desabafo do escritor, daquele a quem é devida a artesania da escrita, o trabalho de minuciosa lavra, que “havia de ser, não principescamente, não regiamente, mas imperialmente pago”.

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