LIVRO: “O Desassossego da Noite”,
de Marieke Lucas Rijneveld
Texto original | “De avond is ongemak” (2018)
Tradução | Patrícia Couto
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Maio de 2021
“O pai está a recolher as últimas vacas, bate-lhes nas ancas com a palma da mão e tranca o portão grande da vacaria. Não estou a perceber nada. A porta só é aferrolhada no inverno ou quando não há ninguém na quinta. Não é inverno e estamos todos em casa. Agora atira as forquilhas para um monte na secção da alimentação e cobre-as com o plástico que sobrou de uma embalagem de ração. Levanta os olhos em direção ao céu. Reparo que ainda não fez a barba. Ampara o rosto com as mãos, os maxilares estão tensos. Só lhe quero dizer que a mãe está em casa à espera, que não está zangada, que ainda não perguntou se gostamos dela, portanto também ainda não duvidou da resposta, e que preparou a sua sanduíche no seu prato preferido, aquele decorado na borda com motivos de pele de vaca. Que eu e a Hana ensaiámos os Salmo 100 esta manhã, o salmo desta semana, e que era puro como leite.”
A trágica morte de Matthies veio pôr a nu a fragilidade das relações no seio da conservadora família Mulder. Sendo o mais velho dos quatro filhos do casal, a sua presença e atitude tinham uma importância vital na coesão familiar, segurando as pontas entre os pais, completamente absorvidos pelas actividades agrícolas, e os irmãos mais novos, dois deles com um pé na adolescência. Cas, com os seus doze anos e uma imaginação transbordante, vive a perda do irmão com um profundo sentimento de culpa. Afinal, ele não a quisera levar a patinar sobre a superfície gelada do lago e ela pedira a Deus que o levasse. Agora que a presença de Matthies deu lugar a uma memória, o luto espalha-se pela quinta e adquire uma dimensão avassaladora, apoderando-se do quotidiano da família. É tempo de encontrar um novo significado para as coisas: o amor e a dor, a posse e a perda, a escola, a igreja, a sociedade, Deus.
É num ambiente marcadamente rural que tem lugar a acção do livro. Estamos no primeiro ano do novo milénio e objectos do quotidiano, influências, comportamentos e demais factores que consubstanciam a vida em sociedade estão a mais no ambiente fechado e rude dos Mulder. Marcado pela curiosidade e pela desconfiança, o olhar de Cas vai avaliando os elementos que a atraem ou que, muito simplesmente, vêm ao seu encontro, identificando o quanto neles há de “pernicioso” mas também de sedutor. É preciso afastá-los da vista e do coração. O combate que trava é feroz, balizado por rígidos preceitos religiosos que remetem para os Estados Gerais e para o protestantismo da primeira metade do século XVII. Nesta luta constante entre o bem e o mal, Cas apenas busca um pouco de amor. Tal como os irmãos, vê-se entregue a si própria. Cada vez mais afundados na sua dor, os pais não são a resposta. Só mesmo o casaco vermelho, que enverga como se fosse uma segunda pele, parece trazer-lhe um pouco de conforto.
Não foi por acaso que Marieke Lucas Rijneveld conquistou com “O Desassossego da Noite” o Man Booker International Prize em 2020. A sua escrita poderosa rejeita liminarmente quaisquer eufemismos, não recuando perante a abjecção ou a imoralidade. De uma crueza que nos agarra pelas tripas, o livro escreve-se com sangue e lágrimas, mas também com merda, ranho, sémen e pús. Se há gestos que são animalescos, se a linguagem pode surgir carregada de obscenidades, o que é isso comparado com a violência de alguém não se sentir amada? Impressiona a forma como a autora é capaz de verter por palavras os sentimentos de uma criança, a pureza dos seus sentimentos, a inocência na forma de se relacionar com o mundo e, ao mesmo tempo, a crueldade de que é capaz quando, à sua frente, percebe fraqueza e vulnerabilidade. Colocar o dedo na ferida e remexer bem fundo, até nos ouvir gritar nesta dor que é também nossa, tal é o desígnio de Marieke Lucas Rijneveld e deste seu livro. De leitura obrigatória!
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