Pensei em escrever estas palavras tendo como ponto de partida as actividades promovidas pela Câmara Municipal de Ovar a propósito do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, instituído há precisamente quatro décadas e assinalado a 18 de Abril. O destaque iria para a visita guiada ao projeto ARHK | Espaço Memória, espaço adquirido em 2018 pela Câmara Municipal de Ovar e que é, desde 2020, um bem cultural de Interesse Público. A finalizar, num breve parágrafo, dedicaria algumas palavras ao concerto de música ibérica e mediterrânica que, mesmo ali ao lado, viria a ser protagonizado por Pedro Viana, João Martins e Bruno Cardoso. Afinal, o impacto em mim causado pelos dois eventos obrigou-me a repensar a estrutura da mensagem. Não porque a visita guiada fosse desprovida de interesse, ainda que o projecto se encontre ainda numa fase inicial, com muitas questões à procura de uma resposta. Sobretudo porque o concerto ultrapassou todas as expectativas, não apenas pela excelência dos temas escolhidos, como pelas sonoridades e pelo virtuosismo das interpretações. É sobre ele que me debruçarei.
Programar um concerto para uma segunda feira ao final da tarde, num local distante da sede do Concelho, terá tido o seu quê de arrojado. Ainda para mais porque a proposta musical, embora fundada na tradição, tem uma “costela” da chamada música erudita, tão incompreensivelmente desvalorizada pelos nossos públicos. A verdade é que o concerto aconteceu, para gozo e gáudio dos que a ele assistiram. “Longo Camino Branco” ou “Bento Airoso” foram o pontapé de saída, pondo-nos em contacto com o melhor que os cancioneiros da Galiza ou de Trás os Montes têm para oferecer. A rematar o concerto, “Durme” mergulhou-nos no melhor da tradição musical sefardita e “Ilha dos Vidros” transportou-nos ao Baixo Alentejo. Pelo meio, “A dos Adufes”, “Escancaras” ou Mandilatos” mostraram-nos a qualidade das composições originais de Pedro Viana e João Martins. De repente, foi como se recuasse algumas décadas no tempo, ao saudoso Festival Intercéltico e à música dos Malicorne ou dos Garmarna, dos Four Men and a Dog ou da Márta Sebestyén, dos Realejo ou dos Dervish.
Fecho os olhos e parece-me escutar, ainda, a voz bem timbrada de Bruno Cardoso a pairar por sobre os suaves acordes da viola braguesa de Pedro Viana e da sanfona de João Martins. “Ó bento airoso / Mistério divino / Encontrei a Maria à beira do rio / E lavando os cueiros do bendito Filho”. Ouvi este tema dezenas de vezes – na voz do Janita Salomé ou de Né Ladeiras, pela Brigada Vitor Jara ou, muito recentemente, no piano de Filipe Raposo – e não me lembro de uma tão bela interpretação como a escutada ontem, na Capela de S. Geraldo. Para tal muito contribuiu o talento dos músicos, o cuidado e empenho posto em cada uma das interpretações, a tocar para um público escasso numa recôndita capela de aldeia como se estivessem no palco da Sala Suggia da Casa da Música perante um auditório com lotação esgotada. Acrescente-se à música as explicações de Pedro Viana sobre a sua universalidade, as particularidades dos instrumentos e a importância de preservar usos e costumes e digam lá se haveria mais bela forma de assinalar data tão importante.
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