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quinta-feira, 21 de abril de 2022

CONCERTO: "Duplex"



CONCERTO: “Duplex”
João Barradas e Ricardo Toscano
Ovar em Jazz 2022
Centro de Arte de Ovar
20 Abr 2022 | qua | 21:30


A paisagem escondida sob um espesso manto de nevoeiro, o aconchego possível debaixo da húmida e penumbrosa ponte nas margens do rio, um latão onde crepitam aparas de madeira. Sem trocarem palavras, três velhos, sujos e de barbas compridas, estendem as mãos e procuram aquecer-se, enquanto outros dormitam entre cobertores de papelão. É assim junto ao Hudson, em Nova Iorque, tal como é junto ao Sena, em Paris. Paris, Nova Iorque e um saltitar entre as duas margens do grande mar atlântico, eis uma forma possível de viver e sentir “Duplex”, espécie de viagem musical que, tranquila e apaixonadamente, João Barradas e Ricardo Toscano vêm percorrendo quase há dois anos, e que teve no Centro de Arte de Ovar, na primeira noite do Ovar em Jazz 2022, mais uma significativa etapa. Um arranque em grande estilo, a juntar em palco dois instrumentistas de excepção. Uma estreia para Barradas em terras vareiras, o regresso de Toscano depois de, em 2019, ter assumido a abertura da segunda edição do Ovar em Jazz, liderando o seu quarteto onde couberam, também, Romeu Tristão, João Pedro Coelho e João Pereira.

A “cidade luz” abre-se por intermédio de Barradas e do seu acordeão. Vibrante, o saxofone de Toscano anuncia “a cidade que nunca dorme”. Mas o contrário é igualmente verdade, de tal forma as sonoridades dos dois instrumentos se cruzam e dialogam, se interpenetram e contaminam, num arroubo de cumplicidade e sedução. Perguntamo-nos o que estamos a escutar. O primeiro tema parece remeter para Joe Henderson, o segundo sugere Dexter Gordon. Há algo de Bill Evans no terceiro e o quarto soa, em definitivo, a John Coltrane. É então que Ricardo Toscano dirige as primeiras palavras ao público e desfaz as dúvidas. Duas das composições são dele, as outras duas são de Barradas. Todavia, ao pensar naquelas (ou noutras) lendas do jazz, não creio que estivéssemos assim tão longe da verdade autoral. A genialidade das composições não encobre, antes realça, a importância dos nomes referidos e as suas influências no labor criativo dos dois músicos portugueses. Influências que se estendem a Miles Davis e Herbie Hancock, Art Blakey, Thelonious Monk e tantos, tantos outros. É com eles e com a sua música que aqueles que fazem do jazz a sua vida trocam impressões todos os dias, apanhando-lhes os trejeitos, bebendo a sua forma de ser e de estar.

Num concerto que valeu pelo seu todo, poderá parecer injusto destacar um tema acima dos demais. Todavia, pela sua qualidade harmónica e pela genialidade com que foi executado, “Turnaround”, uma composição de João Barradas, merece uma palavra muito especial. Foi espantosa a forma como o músico fez com que se derramassem do seu acordeão os sons combinados de um piano e de um baixo eléctrico. De repente, era como se João Barradas tivesse dois cérebros, independentes um do outro, mas a funcionar em sintonia. Juntando à articulação deste verdadeiro “dois em um” o saxofone de Ricardo Toscano, o “duplex” passou a “triplex”, transformando o tema num momento de raro prazer e fruição. Claro que houve “Letter to Mother’s Immersion”, mais um tema de João Barradas, a colher a inspiração nas músicas de raiz tradicional. Houve também, a abrir, The View From the Mysterious Window”, de Ricardo Toscano (curiosamente o mesmo tema que abriu o concerto de 2019) e, já na parte final do programa, “Well, you needn’t” esse enorme standard do jazz com assinatura de Thelonious Monk e “If I Should Lose You”, este preenchendo o “encore”, ao encontro do saxofone tenor de Hank Mobley ou de Charlie Parker. Mas que foi “Turnaround” o tema que mais me ficou no ouvido, lá isso foi. Um concerto memorável, a colocar muito alta a fasquia desta edição do Ovar em Jazz, para o (muito) que ainda está para vir.

[Foto: Ovar / Cultura | facebook.com/ovarcultura/]

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