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sexta-feira, 4 de março de 2022

TEATRO: "Monólogo de Uma Mulher Chamada Maria Com a Sua Patroa"



TEATRO: “Monólogo de Uma Mulher Chamada Maria Com a Sua Patroa”
Criação, texto e interpretação | Sara Barros Leitão
Assistência à criação | Susana Madeira
Cenografia e figurino | Nuno Carinhas
Produção | Cassandra
100 Minutos | Maiores de 12 Anos
Teatro Carlos Alberto
02 Mar 2022 | qua | 19:00


“Lavar cortinas. Aspirar atrás dos móveis. Lavar janelas. Limpar. Lavar. Atender telefones. Dar recados. Desenhar refeições equilibradas. Fazer uma bainha. Coser umas meias. Gerir conflitos. Manter a alegria. Tomar conta das crianças. Ajudar nos deveres. Tomar conta dos idosos. Dar banho às crianças. Aos idosos. Ao cão. Passear o cão. Já que vai lá fora leva o lixo. Já que leva o lixo desentope a fossa. Já que desentope a fossa arranja o autoclismo. A-E-I-O-U”.

A história que escutamos não é um policial ou um romance de cordel. Talvez já a conhecêssemos, talvez dela fossemos cúmplices, talvez fossemos protagonistas. Talvez nunca tivéssemos pensado sobre ela ou talvez preferíssemos fechar os olhos. Não é uma história de vilões, embora haja maldade. Também não é uma história de ladrões, embora se fale de roubos. Muito menos é um conto de fadas, ainda que envolva bruxas. Esta é uma história sobre as mulheres “que são como se fossem da família”, uma história que começa a ser contada desde tempos imemoriais e que perdura até aos nossos dias. Escrita e interpretada por Sara Barros Leitão, esta é uma história que nos surpreende pelo que descobrimos em nós e naquilo que se passa à nossa volta. Uma história sob a forma de monólogo. De uma mulher chamada Maria com a sua patroa.

Estreada no CCB há pouco menos de quatro meses, “Monólogo de Uma Mulher Chamada Maria Com a Sua Patroa” chega agora ao Porto, depois de ter passado por várias cidades do país. Baseando-se numa série de entrevistas a trabalhadoras domésticas, historiadoras, sociólogos e sociólogas, dirigentes sindicais e juristas, e na análise de material diverso, dos arquivos do Sindicato do Serviço Doméstico a um conjunto de livros, filmes, teses e artigos, a criadora e intérprete vem resgatar o teatro como modelo de intervenção social e política, carregando-o de verdade com uma fortíssima presença em palco e com o peso das suas palavras, afiadas, cortantes, demolidoras. Ao longo de pouco mais de hora e meia, Sara Barros Leitão assume um conjunto de papéis que têm no “ser mulher” o denominador comum, expondo, reclamando, denunciando e exigindo, em nome da igualdade, do respeito e da justiça. Porque não basta sonhar, é preciso passar à acção.

Com o coração pequenino, vamos escutando as histórias de milhares e milhares de mulheres escravizadas, desrespeitadas e humilhadas, cuja história colectiva continua por contar. “Corte, corte, corte, frieira, queimadura, corte”. As mazelas acumulam-se no corpo, mas também na alma. Insiste-se que “connosco é diferente”, que “elas são como se fossem da família”, rejeitando-se a relação de trabalho e convocando-se a “linguagem dos afectos”, porque ninguém quer assumir que é patrão e que a sua casa constitui um posto de trabalho. Hoje, Portugal é dos países da Europa que mais contrata empregadas domésticas. Um país onde é permitido por lei que estas mulheres trabalhem 44 horas semanais, sem falar no serviço interno. Da mesma forma que é permitido que recebam menos que o salário mínimo, pois a lei prevê que parte do salário possa ser pago em géneros. Vibrante e livre, assim é Sara Barros Leitão e o “monólogo” que tão bem soube escrever e interpretar. Para que a história não fique por contar e a voz das que não têm voz possa ser ouvida.

[Foto: TNSJ | https://www.tnsj.pt/]

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