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domingo, 6 de março de 2022

LIVRO: "História do Cerco de Lisboa"



LIVRO: “História do Cerco de Lisboa”,
de José Saramago
Ed. Editorial Caminho, 1989 (6ª edição, Março de 2001)


“Cada coisa a seu tempo, o cérebro foi a última coisa a ser inventada, O senhor é um sábio, Meu caro amigo, não exagere, Quer ver as últimas provas, Não vale a pena, as correcções de autor estão feitas, o resto é a rotina da revisão final, fica nas suas mãos, Obrigado pela confiança, Muito merecida, Então o senhor doutor acha que a história e a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenha a menor dúvida, Que seria de nós se não existisse o deleatur, suspirou o revisor.”

Quanto mais leio Saramago, mais gosto de (o) ler. A sua escrita faz o elogio da palavra, marca identitária daquilo a que chamamos literatura, mas fá-lo de uma forma elegante, aliando o conhecimento à arte de combinar as palavras, ao mesmo tempo deixando a porta aberta a quem se mostre disponível a visitar o seu processo criativo e as mil e uma maneiras de cozinhar uma história. Deste ponto de vista, “História do Cerco de Lisboa” é um dos seus mais extraordinários livros, dois tempos e duas histórias que se misturam e confundem ao correr das páginas, o labor da escrita revelado nos seus detalhes mais íntimos, o quanto uma palavra, por muito pequena que seja, pode alterar o rumo dos acontecimentos e dar um novo sentido à História.

Estamos em Lisboa no início de um novo milénio. Uma Lisboa que se espalha por sete colinas, dominada por um castelo altaneiro, o Tejo como um mar a seus pés. A manhã nasce envolta em nevoeiro. As torres da Sé não são mais que um borrão apagado, apenas se adivinha o traço vermelho da ponte. Ante a brancura que cega, o ouvido apurado leva-nos a escutar o almuadem que chama para as primeiras orações da manhã. Passos agitados ecoam no empedrado irregular da íngreme calçada. As vozes falam de pedras atiradas do lado de fora da muralha a caírem sobre as casas e a gente de dentro, espavorida, que procura escapar ao terror. Estamos em Lisboa e não tardaremos a assistir à descida, pela derradeira e definitiva vez, do crescente muçulmano no alto do castelo, substituído pelo pendão de D. Afonso Henriques com as quinas como as chagas de Cristo. Lisboa está ganha, perde-se Lisboa.

Entre gramáticas, dicionários da língua e vocabulários, José Saramago faz desta “História do Cerco de Lisboa” uma sentida homenagem ao exercício de revisor, esses “anjos-da-guarda” dos escritores, apartados, por dever de ofício, do gosto da modificação, do prazer da mudança, do sentido da emenda, tão diferentes dos autores que emendam sempre, “eternos insatisfeitos” que são. Feitas de pequenas histórias, a História, o Cerco e Lisboa vão-se dando a conhecer através de um livro mil vezes pensado na cabeça do escritor, mil vezes escrito e emendado, mil vezes revisto. Um livro que, na forma de produto acabado, chega às nossas mãos para ser mil vezes saboreado, verdadeira fonte de prazer que é. Da encosta da Trindade à Calçada de Santo André, da Rua das Pretas à Porta de Ferro, a História reescreve-se com nomes como os de Mogueime e Ouroana, Raimundo Silva e Maria Sara.

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