LIVRO: “Uma Vida Assim-Assim”,
de Cláudia Araújo Teixeira
Edição | Carmen Serrano
Ed. Edições ASA II, Setembro de 2021
“Não havia reis ou rainhas, nem pessoas que tivessem influenciado a História, no máximo, teria familiares que fizeram limpezas nos castelos ou engomaram o fato dos militares de Abril. A sua família, porém, ocupava um lugar especial na hierarquia social do Bairro. Talvez não fossem como os vizinhos do bloco sete, que tinham carro e uma tenda avançada no parque de salgueiros, não frequentavam a Sede e almoçavam fora ao domingo. Ainda assim, todos trabalhavam, não se dedicavam a atividades ilícitas, os avós, tanto paternos como maternos, tinham fama de serem pessoas de bem, o que não se podia dizer da maioria dos vizinhos, que podiam não ser maus mas tinham dificuldade em perceber o que era o bem.”
Poderia ter sido Samanta, Luana ou Cátia Vanessa. A autora, porém, quis chamar-lhe Cristina Maria, naquilo que deve ser entendido como “um golpe de sorte”, espécie de “presságio do que estava para vir”. Cristina Maria nasceu no Bairro, construído em finais dos anos 60 para albergar os desalojados do progresso. Verdadeira microcidade, o Bairro contava, ao todo, com “quinhentas e vinte e duas casas, distribuídas por quinze blocos, quatro andares por entrada, três casas por andar que desaguavam num patamar que ligava a outros patamares, todos eles enrodilhados em escadas abertas com grades”. É lá que iremos conhecer a grande protagonista desta história, juntamente com os pais Fernando e Clara, os irmãos Marcelo e Lucas, a avó Fatinha e toda uma “fauna” onde se incluem o Sr. Alexandre, a D. Lídia, a Miquinhas, a Alexandrininha, o Zé das Vacas, o Chico da Tona, o Rui dos Índios, o Garageiro do quinze, o Quim maluco e muitos outros.
Romance de estreia de Cláudia Araújo Teixeira, “Uma Vida Assim-Assim” mergulha o leitor na vida de um bairro social do Porto, com as suas peculiaridades e organização, a sua estrutura e idiossincrasias. Um bairro que constitui um verdadeiro microcosmos, com uma dinâmica social própria, uma organização alternativa e uma economia paralela. Com escola, café, mercado, um ringue, uma infinidade de mercearias e uma Sede que, “para além de servir aquilo que um qualquer serve, era também poiso dos jogos de sueca, das festas populares e dos troféus de cicloturismo e atletismo dos habitantes do Bairro”. É aqui que, através de Cristina Maria, assistimos a uma novela da Globo depois do jantar, fugimos dos barulhos da vizinhança, vamos a um concerto no auditório ao ar livre do palácio de Cristal, gritamos “Soares é fixe” e votamos no “partido dos trabalhadores”.
Ainda que possa parecer excessivo, percebe-se o uso que Cláudia Araújo Teixeira faz do calão “à moda do Porto”, acentuado por aquilo a que chamaria a “pronúncia do Norte” e que a autora faz questão de grafar a rigor. Para o bem e para o mal, esta é uma marca identitária da cidade e das suas gentes, naquilo que têm de mais autêntico. É, se assim o quisermos, uma forma de trazer o leitor para o Bairro, de o condicionar numa cultura assaz peculiar, de o pôr a ver o mundo “do lado de dentro”, do lado onde as oportunidades são cada vez mais escassas e onde sobra, na melhor das hipóteses, “uma vida assim-assim”. Cristina Maria é a demonstração de que é possível escapar à força centrípeta que o bairro exerce, ainda que não consiga nunca livrar-se da vergonha com a qual nasceu. Uma vergonha que a acompanhará a vida inteira. “Vergonha da vida que teve, vergonha da vida que não teve, vergonha da vida que tem.” Um belíssimo tributo ao Porto e às suas gentes, no que têm de mais intrínseco e genuíno.
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