Enorme noite de fado, aquela que Sara Correia ofereceu ontem no auditório do Centro de Artes de Águeda. Começou com “Eu Já Não Sei”, um clássico dos anos 60 do repertório de Carlos Ramos, resgatado por António Zambujo no seu álbum “Outro Sentido”, e prosseguiu com “Antes Que Digas Adeus”, com música de Armando Machado e letra de Diogo Clemente. Só então a fadista entrou no seu mais recente trabalho, “Do Coração”, lançado em Setembro de 2020 e que esteve indicado para o Grammy Latino de melhor álbum de música de raízes em língua portuguesa. Naquilo que podemos ver como uma primeira rodada, “Não se Demore”, “Você Ganha Sempre”, “Chegou Tão tarde”, “Porquê do Fado” e “Dizer Não” foram a demonstração cabal da extraordinária voz de Sara Correia e da enorme qualidade inerente a este seu trabalho. “Dizer Não”, um fado composto por Luísa Sobral e que é quase um tango, foi mesmo o primeiro de vários momentos raros que a noite proporcionou.
Os dois momentos seguintes foram, igualmente inesquecíveis, primeiro com a fadista a abandonar o palco, entregando-o a Diogo Clemente na guitarra, Ângelo Freire na guitarra portuguesa, Frederico Gato na viola baixo e João Silva na bateria e percussões. O fulgor do desempenho, a cumplicidade entre os instrumentos e o todo harmonioso foram merecedores de sentido e prolongado aplauso. O melhor veio logo de seguida, Sara Correia com Amália na voz a trazer-nos o sublime “Fado Português”, “Ai que lindeza tamanha / Meu chão, meu monte, meu vale / De folhas flores frutas de oiro / Vê se vês terras de Espanha / Areias de Portugal / Olhar ceguinho de choro”. Como se tivesse uma mola invisível, o público levantou-se num final aos gritos de “fadista”, reconhecido, quase reverencial. Estava-se em modo “Sara Correia”, nome do álbum lançado em Setembro de 2018, como o confirmam “O Meu Bom Ar”, “Sou a Casa” e “Lisboa e o Tejo”, uma marcha popularizada pela enorme Maria da Fé, ela que até nasceu no Porto.
“Os Teus Recados”, com música do Fado Triplicado de José Marques Piscalarete, antecedeu “um momento muito especial” com a vinda ao palco do Tomás, fadista de palmo e meio mas Fadista com letra grande. “Canoas do Tejo”, primeiro, e depois, numa espécie de encore muito reclamado, “Lisboa, Menina e Moça”, foram dois momentos felizes, a plateia a acompanhar o Tomás nos refrãos e a prestar-lhe uma bonita e significativa ovação. Caminha-se para o fim e o público está rendido à voz, aos instrumentos, ao Fado. Tempo ainda de escutar esse verdadeiro “hit” que é “Quero é Viver”, tema de novela com o mesmo nome, também “Alfama”, de novo Amália na voz e na alma e ainda uma combinação do “Fado de Outrora” com o “Velho Fado Corrido”, a “chamar” ao palco Carlos Zel, Maria Teresa de Noronha e tantos outros para nos dizerem que “não é fadista quem quer / mas sim quem nasceu fadista”.
Sara Correia terminou o concerto a cantar a sua maior referência, a nossa maior referência: Amália Rodrigues. E como soou incrível “Estranha Forma de Vida” na sua voz. “Foi por vontade de Deus / Que eu vivo nesta ansiedade / Que todos os ais são meus / Que é toda minha a saudade / Foi por vontade de Deus”. Impossível não se ser tomado pela emoção, não sentir um arrepio, não se marejarem os olhos de lágrimas. E aqui cabe o elogio da fadista, um elogio que deve estender-se aos músicos que a acompanham. Não será nunca demais louvar a excelência da sua voz, timbrada, potente, a voz que talvez mais se aproxime da de Amália, das muitas que tenho escutado até hoje. Para quem, como eu, nunca tinha estado num concerto de Sara Correia, fica também a sua extraordinária presença em palco, os ademanes e trejeitos de quem vive e sente o fado como uma segunda pele, a capacidade de criar com o público uma empatia e cumplicidade únicas. Uma grande e grata surpresa, pois, numa noite que ficará para a história com a marca indelével das coisas verdadeiramente boas que vivi até hoje em matéria de fado.
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