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domingo, 27 de março de 2022

LIVRO: "A Última Curva do Caminho"



LIVRO: “A Última Curva do Caminho”,
de Manuel Jorge Marmelo
Ed. Porto Editora, Fevereiro de 2022


“Morto há algum tempo, Henrique Quarto Coelho pareceu-me ainda menos vivo do que os falecidos comuns, mais defunto do que as pessoas que, nas paredes, se assomavam das molduras com retratos de gente antiga. Ali estavam, quase todos homens de feições rudes, os meus avós quando eram novos e vivos, posando a partir de outro tempo para que as suas histórias se agitassem apenas um pouco e se desprendesse do vidro dos caixilhos a poeira fina e invisível a que, sem outros afazeres mais práticos, hei-de procurar dar sentido.”

Após se ter jubilado, um professor catedrático regressa à velha casa de família, deixando para trás o bulício da cidade, uma preenchida vida social, a própria mulher. Vai poder agora tirar o máximo partido da tranquilidade do campo, recuperar uma saúde castigada pelos excessos e dedicar todo o tempo livre à leitura e, sobretudo, à escrita. De boas intenções, porém, está o inferno cheio e Nicolau Coelho vê os seus projectos esbarrarem na inércia, na ausência de vontade para ir além do básico à sobrevivência, lançando-se numa ociosidade estéril que o afasta cada vez mais dos outros e de si próprio. Restam-lhe as memórias de um passado indistinto, mescla de verdade e fantasia, onde as suas próprias histórias se cruzam com as histórias da família - do trisavô Henrique Damião Coelho ao pai Henrique Quarto Coelho -, vergadas ao peso de uma “condenação” que a todos une. Enquanto isso, a página aberta do computador permanece em branco. Imutável. Serena. Definitiva.

Feito de avanços e recuos, de interpolações, de pausas que se abrem no tempo como clareiras, como se os segundos pudessem divergir na sua duração e o tempo fosse algo que se acomodasse aos estados de alma, “A Última Curva do Caminho” obriga-nos a reflectir sobre a vida e as suas intermitências. Da idade da inocência ao inverno da vida, somos aquilo que quiseram que fôssemos ou que nos permitiram ser. Ainda que a vontade interior possa, em certa medida, determinar os rumos de uma vida, há estigmas dos quais nunca nos libertamos e que teimam em assombrar-nos, agigantando-se no momento de encararmos “a última curva do caminho”. Puxando das fotografias dos seus antepassados, como se de um jogo de cartas se tratasse, Nicolau Coelho vai encontrando pedaços de si em cada uma daquelas personagens, ao mesmo tempo que se confronta com a impossibilidade de baralhar e voltar a dar. O jogo está a chegar ao fim e a vida é uma “negra”, sem lugar a desforras.

É de braços caídos que a personagem principal do livro faz o balanço de toda uma vida. Nela, o momento presente adquire um peso esmagador face a um passado que é olhado de forma nostálgica mas não sem uma ponta de ironia. Um paquete branco que sulca um mar pejado de peixes-voadores, um triciclo amarelo em África que o filho mais novo da preta Cesária tanto cobiçava, a primeira bicicleta, o charco dos girinos, os livros que escreveu ou as mulheres que amou, estão de volta só para confirmar que “a memória é um negrume riscado por débeis coriscos que mal permitem enxergar alguma coisa”. O aumento das pensões, o mau entrosamento do meio-campo do clube de futebol da terra ou o escandaloso romance do barbeiro com a mulher do farmacêutico não atenuam, hoje, a sensação de Nicolau Coelho estar escondido sem que alguém o procure ou queira saber dele. “Quer tenham sido mendigos ou faraós, os mortos deixam para trás tudo o que possuíram e voltam a ser apenas cinzas e pó”. Safoda.

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