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domingo, 13 de março de 2022

LIVRO: "Madalena"



LIVRO: “Madalena”,
de Isabel Rio Novo
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2022


“Quereria ter comigo as cartas de Álvaro Amândio e Madalena Brízida. Algumas já as conhecia de cor. Conhecia-as tão perfeitamente que, deitada na cama da clínica, os olhos desatentos colados às imagens sem som e sem sentido que desfilavam no plasma implantado na parede em frente, duvidava da minha memória e imaginava que era eu quem acrescentava palavras, intenções, sentidos, quem preenchia as entrelinhas, quem escrevia afinal a história dos seus amores e as minudências da sua tragédia.”

Creio ser importante começar por dizer que falar de “Madalena” é falar de cancro da mama. Para mim é, visto ser esse, na justa medida, o assunto de um livro onde se expõe, sem rodeios, a forma como alguém lida com o flagelo da doença. Estamos perante aquele que é o mais comum tipo de cancro entre as mulheres, tendo vitimado mil e oitocentas só no último ano, de um total de sete mil mulheres a quem a doença foi diagnosticada. Na primeira pessoa, Isabel Rio Novo propõe-nos a figura de uma mulher que sucumbe à doença. Uma mulher radiosa, cuja luz vemos apagar-se à medida que atravessa as fases de um processo onde cabem diagnósticos invasivos e dolorosos, cirurgias de grande escala, tratamentos coadjuvantes altamente agressivos, o aprender a viver com as alterações induzidas pela doença, as pressões psicológicas e sociais que vão surgindo e importa ultrapassar. No fim, sem tabus, de forma corajosa e digna, a morte é assumida como o fim de um tempo, uma inevitabilidade para quem vem ao mundo. Seja quem for.

Devo confessar que sinto por Isabel Rio Novo uma enorme admiração. Há na sua escrita uma linguagem que se aprende a reconhecer, feita de um enorme cuidado na abordagem dos sentimentos e de um rigoroso critério na escolha das palavras, o que transforma cada livro seu num exercício de sensibilidade, elegância e bom gosto. No caso de “Madalena”, porém, a autora vai mais longe, acrescentando ao livro a sua própria experiência e as memórias de um tempo em que, também ela, travou uma luta tenaz contra o cancro. Um livro corajoso, pois, com a autora a dar muito de si à personagem, permitindo dizer aquilo que só alguém que viveu a doença pode dizer. É essa verdade que prende o leitor e o ajuda a criar uma invulgar empatia com esta mulher, a entender o seu sofrimento e a ser cúmplice das suas opções, ao mesmo tempo aprendendo a reconhecer novas dimensões no tempo e diversos sentidos na vida.

Não se pense, porém, que “Madalena” é uma espécie de ensaio sobre o cancro da mama ou um qualquer livro de auto-ajuda, desses que vendem meio milhão de exemplares enquanto o diabo esfrega um olho. Frio, frio, frio. É perante literatura da boa que estamos, um romance tecido no melhor que a nossa língua tem para oferecer, consubstanciado no refazer da história dos bisavós da personagem, Álvaro Amândio e Madalena Brízida, através das cartas trocadas entre ambos. Se, por um lado, retiramos um enorme prazer do confronto entre duas épocas tão distintas, o carácter epistolar do livro acrescenta-lhe interesse, sobretudo pela beleza dos trechos, cobertos por uma fina patine romântica mas deixando perceber o quanto as diferenças de género marcaram, intensa e dolorosamente, sucessivas gerações de mulheres. É na busca das semelhanças entre esta Madalena, de “cabelos ruivos, bastos, (…) os olhos claros, o perfil insinuante”, e a sua bisneta, tão diferente de si na aparência mas afinal tão próxima, que partimos, navegando pelas páginas deste livro em sobressalto permanente.

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