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quinta-feira, 10 de março de 2022

LIVRO: "Grande Turismo"



LIVRO: “Grande Turismo”,
de João Pedro Vala
Edição | Lucia Pinho e Melo
Ed. Quetzal Editores, Fevereiro de 2022


“Na altura não pensava nisso, claro, mas agora parece-me adequado que o jogo que usei como metáfora para estas histórias se chamasse 'Gran Turismo', porque é afinal de turismo que se trata. Nunca consegui deixar de me ver como visitante de um mundo com roupa de cama insuficiente, com audioguias desinteressantes que passam ao lado da questão essencial. Um mundo de bifes que, com muito boa vontade, poderiam ser descritos como ‘meio-termo’ quando eu os pedi explicitamente em sangue.”

Começo pelo princípio, pelo prefácio que não se assume como tal e que coloca neste livro a sua primeira nota de desconcerto. Como é possível que alguém faça tão má crítica literária e a verse em prefácio? Que vontade resta ao leitor para se atirar à história depois de ver desvendadas, descaradamente, partes do livro que adivinha importantes? Para que conste, este pedaço de “mau gosto” é assinado por um certo “Carlos Viana (ou Tiago, ou lá como é suposto eu chamar-me neste livro)”, o mesmo Tiago em quem tropeçaremos amiúde ao correr das páginas, grande amigo do João (Pedro Vala), o protagonista desta que é (será?) a sua história e na qual assume o papel de narrador. É ele que nos sugere, entre muitas outras coisas, que talvez aquele prefácio não seja bem “o” prefácio e que faz tudo parte da trama. “Espero que não me leves a mal”, diz a certa altura, quando a irritação inicial ficou lá para trás, cedendo lugar à grande diversão.

Um livro divertido, pois. Divertido, sem deixar de ser sério. Irónico, sem com isso encobrir as muitas verdades que nele se abrigam. Imperativo, mesmo que destrinçar o que é real do que é ficção possa resultar num exercício deveras complexo. “Grande Turismo” será tudo isto e o seu contrário, no que podemos perceber uma reflexão pertinente e necessária sobre as voltas e reviravoltas de uma vida, ainda que curta, como a do autor. É nas encruzilhadas de um caminho incerto, percorrido de forma precipitada e desatenta, que vamos encontrá-las, no que são ou poderiam ter sido, fazendo do virar à esquerda ou à direita um mero acaso cujos porquês não saberemos nunca explicar. Desarmante de sinceridade, João Pedro Vala traz-nos para o seu canto do ringue e mostra-nos o espaço em volta, pejado de armadilhas, levando-nos a acreditar nas suas agruras ou nos seus dilemas, também nas suas pequenas vitórias, para logo se denunciar com um gesto ou uma simples palavra. Olha-nos então nos olhos e baixa-os de seguida, no preciso momento em que rebenta às gargalhadas. E nós com ele.

“Provavelmente um romance”, há em “Grande Turismo” um conjunto de apontamentos que vale a pena destacar, a começar pela habilidade do autor em “falar a sério a brincar”, quase como se de um exercício de (boa) comédia stand-up se tratasse, o ar grave e sério enquanto nos prega a maior peta do mundo. Há também essa arte de cruzar tempos distintos, misturando-os de forma intencional para nos mergulhar no campo das hipóteses, levando-nos, por exemplo, ao encontro de uma Guerra Colonial que se estende muito para lá de Abril de 74, e pondo-nos à beira de um ataque de nervos, junto a Cahora Bassa, devido às falhas na internet que nos impedem de ver em directo o Porto a jogar no Dragão com o Benfica. Enfim, há em João Pedro Vala esse exercício salutar de saber olhar para dentro de si e de aceitar a sua condição de miúdo de classe média-alta, urbano-depressivo”, confrontado com a sua falta de jeito para lidar com mulheres, a sua extremada hipocondria, uma tendência natural para a melancolia, um sentido quase auto-destrutivo. Uma viagem de “grande turismo” pelo interior de si próprio, num desajeitado exercício de navegação à vista, o barco encalhado à espera da próxima maré viva que volte a resgatá-lo.

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