Sentir. Debater. Convidar. Participar. Foi com estas palavras de ordem que o Shortcutz Ovar regressou ao convívio dos cinéfilos para a sua 6ª temporada. Um regresso celebrado por um público entusiasta e generoso que, em noite chuvosa e fria, fez questão de marcar presença na Escola de Artes e Ofícios para uma bela sessão de cinema curto em dose tripla. A programação não quis defraudar as expectativas e caprichou na proposta de três filmes muito particulares, repartidos entre a ficção, o documentário e a animação, com as questões de género como denominador comum e a tónica no feminino. Já lá iremos, mas antes disso importa deixar uma nota para a apresentação do Júri desta nova temporada, no qual pontificarão a produtora Joana Gusmão, a actriz Mia Tomé e o actor e encenador Leandro Ribeiro. Uma palavra ainda para a Clara, a Duda, a Maria, a Sara e o Jorge. Elas e ele são o Júri Jovem e irão ter uma palavra a dizer mais lá para o final do ano, não apenas pela avaliação que farão das três dezenas de filmes a exibir ao longo de dez sessões mensais, mas pela sessão especial que terão a responsabilidade de programar.
Filmado em contexto de escola, “(In)Quietude” marcou o arranque da nova temporada. Com direcção, argumento e imagem de Ana S. Carvalho, o filme acompanha Maya no doloroso processo de reaprender a viver após a perda da mãe. Marcadamente pessoal, o filme é um reflexo das angústias desta jovem realizadora, que encontra na personagem interpretada por Ana Pinheiro o seu alter ego. Desta simbiose destaca-se na tela o fascínio pela água, o tanto que é possível dizer sem usar as palavras, os pesadelos que vêm assolar as noites, a serenidade que se abre na mão que se oferece, a quietude que corresponde ao ultrapassar dos conflitos e ao sarar das feridas. Filme de uma enorme sensibilidade, com um sentido do ritmo extraordinariamente apurado para uma primeira obra, “(In)Quietude” mereceu todos os aplausos que lhe foram prestados e obriga-nos a seguir com atenção os próximos trabalhos desta realizadora.
Galardoado na recente edição do Festival du Nouveau Cinéma de Montreal, “Luz de Presença”, de Diogo Costa Amarante, foi o segundo filme da noite, trazendo com ele o improvável encontro entre um homem triste, que sai de casa para entregar uma carta, e uma mulher que, na noite chuvosa, o avisa para ter atenção à estrada e ao piso escorregadio. Tal como o filme anterior, também aqui o realizador incorpora na narrativa fílmica um conjunto de ideias, histórias e factos da sua vida pessoal, encurtando a distância que separa o real da ficção. Dominado pela imagem esfíngica de Diana Neves Silva, “luz de presença” arrebatadora num mundo frio e carregado de sombras, o filme resgata a voz dos que não têm voz, capazes de assumir um espaço seu por direito próprio, um espaço de luz e de liberdade. Com fotografia (belíssima) de Jorge Quintela e uma curta mas muito significativa participação de Luís Miguel Cintra, o filme motivou uma intensa troca de ideias no final, com o realizador a frisar a generosidade e entrega da actriz principal, nela homenageando a imensa mole de homens e mulheres que respondem com dignidade e altivez ao desprezo que a sociedade lhes vota.
A fechar a noite, “O Teu Nome É” recordou-nos a história chocante dos últimos dias da vida de Gisberta Salce Jr., transexual brutalmente torturada e assassinada no Porto em 2006, através da memória e testemunhos reais de amigas transexuais e de dois dos jovens envolvidos nas circunstâncias da sua morte. Documentário animado, o filme revela-se de uma enorme violência, confrontando o espectador com as feridas que permanecem abertas na nossa sociedade, como a discriminação, o preconceito e a violência de género, bem como a incapacidade em solucionar problemas relativos ao abandono, à solidão ou aos sem-abrigo. De uma enorme coragem, Paulo Patrício, também responsável pelo argumento, faz-nos recuar no tempo para nos questionar sobre o que terá mudado nestes últimos quinze anos em matéria de direitos humanos, pelo menos no que toca a uma franja mais marginal da nossa população. Há memórias que importa preservar e o contributo deste filme vai nesse sentido. O “Pão de Açúcar”, esse, lá continua, esventrado, pestilento, infame, para nossa vergonha e agravo.
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