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domingo, 20 de março de 2022

LIVRO: "Doramar ou A Odisseia"



LIVRO: “Doramar ou A Odisseia”,
de Itamar Vieira Junior
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2022


“Os homens da embarcação nos içaram como fantasmas daquele cemitério, nos levantaram do inferno em que estávamos havia horas. Eles diziam coisas que eu não compreendia, encontrei forças para gritar e chorar apontando para o mar, era tudo muito grande visto de cima da embarcação, eu falava seu nome e apontava com as mãos enrugadas do tempo que passamos na água, apontava e chamava seu nome. Eles olhavam com atenção de cima da embarcação, mas não podia compreender o que eu falava, eu gritava baixo, sem forças, là-bas, mon mari, dans la mer.”

Itamar Vieira Junior é um escritor de causas. Quem já leu “Torto Arado”, sabe o quanto as desigualdades sociais, o trabalho escravo ou a violência de género, a par com os atropelos ambientais, são alvo das suas preocupações e da sua luta. Nesse sentido, a literatura é uma arma ao serviço da denúncia de uma sociedade dominada por interesses obscuros, de políticos corruptos, da exploração crescente que cilindra os mais desfavorecidos, do fosso cada vez mais fundo entre ricos e pobres, tudo isto num planeta doente, moribundo, para o qual não há plano B. Mas se Itamar Vieira Junior prova, com “Torto Arado”, ser um extraordinário romancista, a sua faceta de contista não é menos notável. Vem isto a propósito de “Doramar ou A Odisseia”, um livro que acaba de ser publicado entre nós e que reúne doze textos, alguns deles publicados em “A Oração do Carrasco” (2017), aos quais o autor acrescentou um conjunto de inéditos de feitura anterior ou mais recente.

No afã de um fascinante tricotar de palavras, na singularidades dos seus sentidos e na beleza do seu contar, Itamar Vieira Junior oferece-nos um vasto e riquíssimo leque de contos, todos diferentes entre si, mas com um mesmo tom a uni-los. Um tom poético, suave como uma carícia, moldado no verde profundo da floresta, na água da chuva que cai incessante, no brilho do relâmpago ou no vermelho sangue que corre nas veias, irmanado com a matéria e os seus elementos, respeitados e adorados pelo homem que com eles comunga todos os dias, a quem entrega o seu querer e a sua vida. São textos que encontram continuidade em “Torto Arado” e se prolongam para além dele, conferindo força e coerência ao conjunto da obra do autor. Textos onde o céu é “neme” e a terra é “wami”, o rio é “faha” e o peixe é “aba”, os espíritos são “aboni” e o coração é “ati boti”, exaltantes na sua pureza, inspiradores no apego à mãe natureza e a todos os seus filhos.

Homens e mulheres roubados à terra e enviados para o outro lado do mar em barcos de negreiros, milhares de migrantes cujas balsas os despejam às portas da Europa ou se afundam no meio do Mediterrâneo, deserdados da terra em nome do progresso, criados de servir que se rebelam contra a sua condição - em todos escutamos uma voz a gritar liberdade. Homens e mulheres que, “com seu senso de humanidade interromperam guerras, sofreram dores, atravessaram desertos, viveram odisseias, transpuseram muros e cercas, forjaram a liberdade nas entranhas do seu ventre.” É nelas e neles que o autor se revê, é com eles que partilha inquietações e medos, mas também a esperança e a ânsia de um viver melhor e mais digno. Por isso nos lembra que, por muito altos que se ergam, os muros derrubar-se-ão; por muito que a destruam, a floresta renovar-se-á; por muito humilhados que sejam, os homens revoltar-se-ão. E a sua revolta espalhar-se-á. E, na sua luta por justiça e igualdade, vencerão!

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