Mesmo assumindo que poderei estar a repetir-me, começo por vincar que, ao falarmos de pintura e desenho, devemos ter em mente que estamos perante dois tipos diferentes de arte. O desenho é a base da pintura, mas não é verdade que a pintura seja a base do desenho. Para se ser um bom pintor é preciso, antes de mais, ser um bom desenhista. Combinar as linhas e as sombras do desenho com a expressão das ideias, emoções ou sentimentos, tal é o caminho que nos leva ao desenho artístico, um meio de manifestação estética e uma linguagem expressiva para o Homem desde tempos imemoriais. Todo este percurso, que parte do desenho e nos leva à pintura, encontra-se exemplarmente documentado na exposição intitulada “Escaparate” e que reúne, no Centro de Artes de Águeda, um significativo conjunto de obras de Maria Melo e que são parte do espólio cedido pela artista, em finais de 2018, ao Município de Águeda.
Escaparate é o ponto de partida para esta exposição. Escaparete, que o dicionário define como montra ou redoma que cobre ou resguarda objectos, mas também como escapadela [informal] ou subterfúgio [figurado]. Escaparate, no caso presente um objecto herdado pela pintora, que o guardou e restaurou de modo a mantê-lo o mais presente possível no seu dia-a-dia. Sem querer repetir a sua função anterior, este escaparate vê-se transformado num contentor de memórias que acompanha a artista na sua prática. Poder-se-á dizer, então, que toda a sua motivação e vontade é movida pelo escaparate. E que através da imaginação se torna “aparato de escape”. Escaparate passa de objecto a título, de título a modo de ser e de estar. Uma autobiografia em desenho que ora se perde, ora se encontra, numa busca constante de liberdade.
Sob o olhar do visitante desfilam desenhos sem restrições de tema e de técnica. Óleos, ceras, lápis de cor, pastel, composições simples feitas de leves traços ou elaboradas, colagens, paisagens reais ou simplesmente imaginadas, conjuntos alinhados ou dispersos, a cuidada anarquia na forma como se relacionam e interagem os elementos expostos vêm reforçar o sentido de liberdade no simples acto de desenhar. Tem a palavra a artista: “Já que a arte é um assunto tão discutível que nem os próprios especialistas se entendem entre si, a minha opinião é tão boa como a deles - é tudo uma questão de preferência subjectiva. As minhas podem até valer mais, porque sou uma leiga no assunto e reajo perante a arte de um modo espontâneo, sem os olhos vendados por dúzias de teorias complicadas. Há forçosamente qualquer coisa de errado numa obra de arte se for necessário um especialista para a apreciar.”
Sem comentários:
Enviar um comentário