Não é raro emocionar-me com uma obra do repertório clássico, mas nunca como ontem, no belíssimo espaço do Auditório 3 da Fundação Gulbenkian. Foi em estado de profunda comoção, doridamente, que escutei, primeiro, a versão de Lili Boulanger do “Pie Jesu” e, logo de seguida, essa verdadeira pedra angular da renovação da música litúrgica francesa, escrita por Gabriel Fauré entre 1887-1888, o seu “Requiem”. Razões para tal, foram essencialmente duas, a primeira das quais teve a ver com a enorme ligação que tenho a esta peça, escutada pela primeira vez num momento inesquecível, na medieval Abadia de Sisteron, com Michel Corboz à frente do Ensemble Vocal de Lausanne. A segunda, pelo terrível momento que vivemos, a invasão russa da vizinha Ucrânia a preencher os nossos dias de dor e incerteza, as emoções ao rubro perante a beleza de uma melodia divinamente inspirada e que faz dos céus um local de paz e repouso eterno para os justos.
Composto em 1918 por Marie-Juliette Olga Lili Boulanger, o “Pie Jesu” é uma pérola no seio do valioso conjunto de obras escritas pela compositora parisiense entre 1911 e 1918. De acordo com as “Mémoires” da pedagoga Nadia Boulanger, irmã da compositora, o “Pie Jesu” foi-lhe ditado por Lili, já acamada e a poucos dias da sua morte, aos 25 anos. Escrito para soprano, quarteto de cordas, harpa e órgão, baseia-se no andamento homónimo do “Requiem” de Fauré, parcialmente citado na melodia vocal. Linhas cromáticas ascendentes e descendentes, no órgão, marcam o tecido contrapontístico, bem como os lamentos pungentes confiados aos instrumentos de cordas, de grande complexidade harmónica. Pressente-se um abandono inelutável até aos compassos finais, aí repousando, tranquilamente, sobre a palavra Amen. Coube a Cecília Rodrigues a interpretação vocal desta pequenina peça de apenas cinco minutos e a sua prestação foi exemplar.
O “Requiem”, com toda a carga emocional que o envolve, foi um momento absolutamente único, o coro perfeitamente equilibrado, a orquestra dando o acompanhamento perfeito e os solistas, também eles, ao mais alto nível. Sobre a peça, recorde-se que Fauré idealizou um universo pautado por uma vocalidade de inspiração gregoriana, e uma textura orquestral intimista, com um panejamento harmónico de pendor impressionista, contrariando o estilo então em voga, o lirismo do bel canto italiano e a imponência estrutural e harmónica da tradição sinfónica alemã. Nele ressalta o andamento central, “Pie Jesu”, sereno e contemplativo, súplica para que os mortos possam receber o descanso eterno. Perante a crítica de que o seu Requiem era “uma canção fúnebre de embalar”, Fauré responderia: “Mas é assim que eu vejo a morte, uma entrega feliz, uma aspiração à felicidade celestial”. Arrebatador.
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