Páginas

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

LIVRO: "Gente Acenando Para Alguém Que Foge"



LIVRO: “Gente Acenando Para Alguém Que Foge”, 
de Paulo Faria 
Ed. Editora Minotauro, Fevereiro de 2020


“Não te vás embora, tudo o que eu sou está à vista, não tenho segredos para ti. Não tenho segredos para ninguém, aliás. Queres maior honestidade do que esta? Estou despido na tua frente como no dia em que nasci. Estou despido desde o dia em que nasci, mas só tu olhaste para mim com atenção. A ameaça dos outros é esta. Sabem tudo sobre mim. Só não sabem se não quiserem.”

“O meu pai é melhor que o teu” passa por ser uma frase comum na boca das crianças, mas que tende a desaparecer quando esta “aura romântica” dá lugar à percepção da realidade e, com ela, à desconfiança, à decepção ou mesmo à ruptura. Porque, de muitas maneiras, os pais falham com os seus filhos. Seja por afecto desmedido ou por uma educação autoritária, seja porque se projectam demasiado nas suas crianças ou carregam o peso de um passado traumático que os condiciona nessa relação tão próxima, eles acabam por falhar nas expectativas criadas, transferindo para os filhos o ónus de valorizarem os aspectos positivos e, em muitos casos, a necessidade de se lançarem na descoberta de outros passados, esperando que isso possa redimi-los do quanto de errado tenham feito. Daí que criar um filho seja muito mais do que garantir as condições necessárias à sua sobrevivência.

Transformado numa espécie de fuga para a frente, este exercício redentor serve de assunto a “Gente Acenando Para Alguém Que Foge”, um romance marcadamente autobiográfico que encerra uma viagem às memórias da infância do autor na tentativa de suavizar marcas dolorosas de um passado demasiado presente. Herdeiro de uma relação conflituosa que o pai mantinha com a linguagem dos afectos, Carlos desenvolve uma dimensão pessoal de tudo ou nada. Homem de extremos, repele aquilo a que chama “a parte mais saborosa da vida, os ecossistemas de transição, a zona entre marés, as meias-tintas, os seres híbridos”. É nesta condição que parte para Moçambique em busca da sua infância. Ou, por outra, em busca de uma infância anterior à sua infância. Porque se recusa a ver continuamente nos pais as duas criaturas atrapalhadas e cheias de subterfúgios que sempre conheceu. “São os meus pais, quero-os perfeitos, luminosos.”

Paulo Faria mostra uma enorme coragem neste respigar de memórias, trazendo à superfície momentos de grande intimidade. Despido de máscaras e armaduras, oferece uma voz que está destinada a encontrar eco no leitor, a torná-lo cúmplice de uma demanda que é, também, a sua. Através da escrita, tomamos consciência que os nossos pais também não foram perfeitos, tal como nós não o somos em relação aos nossos filhos. Reconhecemos, também, essa espécie de vínculo que integra muito do que de bom recebemos dos pais, mas também o quanto de mau nos possa ter sido transmitido e que acaba por se revelar nos piores momentos. Magoados, também nós partimos em busca das infâncias anteriores à nossa própria infância, na ânsia de trazer a luz e a perfeição àqueles que foram e são os nossos grandes referenciais. Fazendo tábua rasa de lógicas e cronologias, Paulo Faria escreve como uma urgência, interrogando, confidenciando, numa amálgama de emoções intensas e envolventes. Tal como o autor, talvez nunca possamos descobrir o objecto da nossa busca. Mas fazemos o caminho e isso, como nos diz Kavafis na sua “‘Ítaca”, é aquilo que verdadeiramente importa.

Sem comentários:

Enviar um comentário