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quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

LIVRO: "As Intermitências da Morte"



LIVRO: “As Intermitências da Morte”,
de José Saramago
Ed. Editorial Caminho, Outubro de 2005


“Agora está triste porque compara o que teria sido utilizar as borboletas da caveira como mensageiras de morte em lugar daquelas estúpidas cartas de cor violeta que ao princípio lhe tinham parecido a mais genial das ideias. A uma borboleta destas nunca lhe ocorreria a ideia de voltar para trás, leva marcada a sua obrigação nas costas, foi para isso que nasceu. Além sido, o efeito espectacular seria totalmente diferente, em lugar de um vulgar carteiro que nos vem entregar uma carta, veríamos doze centímetros de borboleta adejando sobre as nossas cabeças, o anjo da escuridão exibindo as suas asas negras e amarelas, e de repente, depois de rasar o chão e traçar o círculo de onde já não sairemos, ascender verticalmente diante de nós e colocar a sua caveira diante da nossa.”

Olhar a vida com a curiosidade própria das crianças, prosseguir de mãos dadas com o menino que há em si e reflectir sobre o acto de existir, tal parece ter sido o desígnio de José Saramago ao longo de toda a sua existência. Contaminando a sua obra, esta postura perante o mundo determinou que a escrita surgisse do embate com as suas dúvidas e inquietações, com os seus grandes medos, reflectindo essa necessidade de levantar questões, de partilhá-las, de provocar aqueles que se mostram capazes de o escutar. Em “As Intermitências da Morte”, a vida volta a estar no centro das preocupações do autor e, por contraponto, a própria morte. Por esse motivo, atrevo-me a dizer que este livro passa por ser nuclear na obra de Saramago, nele se congregando os grandes temas do seu pensamento em contextos tão abrangentes como o filosófico, histórico, social e religioso.

E se, de repente, a morte deixasse de cumprir o seu papel? Assim mesmo, se a partir das zero horas de um primeiro de Janeiro, num pequeno país deste mundo com cerca de dez milhões de habitantes e fronteiras geográficas bem definidas, vigorasse a proibição de se morrer? Como se o tempo tivesse parado ou a dama de orografia óssea coberta por um lençol e empunhando uma gadanha tivesse decidido tirar uns meses de férias. Uma “greve da morte”, se assim quisermos. O impacto desta situação lança, em poucos dias, o país no caos, exigindo respostas que o Estado e a Igreja não conseguem dar e deixando desesperadas as famílias que vêem os seus agonizarem sem poderem contar com o libertador momento da morte. Hospitais e “lares do feliz ocaso” deixam de ter condições para dar resposta a cada vez mais gente e as próprias agências funerárias e os coveiros, de súbito sem trabalho, vêem-se obrigados a uma requalificação da sua actividade, voltada agora para cães, gatos e canários, uma ou outra tartaruga e bichos de menor importância.

Com imaginação, compaixão e uma rasgada ironia, o autor mergulha na representação da morte na nossa cultura, expondo as suas relações com os vários poderes e mostrando o seu impacto em dimensões que nos aproximam do seu real significado e alcance. Mais do que em qualquer outro livro de José Saramago, “As Intermitências da Morte” traz à superfície o carácter de grande humanista do escritor, munido da palavra com uma arma para gritar sobre o nosso mundo. Mordaz, criativo e extraordinariamente jovial, Saramago mergulha connosco na “idade dos ses”, abrindo um leque de opções que, se tornadas absurdas num contexto geral, tocam a todos individualmente, expondo as grandes contradições em que lavra o nosso entendimento em matéria de vida e morte. Retrato lúcido de uma existência improvável, de contornos pouco definidos e cujo fim natural é do domínio do imprevisto, “As Intermitências da Morte” é um extraordinário livro de exaltação à vida e um convite a que a aproveitamos sem reservas. Quanto à morte, logo se verá.

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