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sábado, 23 de outubro de 2021

LIVRO: "Cartas Vermelhas"



LIVRO: “Cartas Vermelhas”,
de Ana Cristina Silva
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Oficina do Livro, Setembro de 2011


“As lágrimas que neste momento correm no meu rosto são de extrema claridade. Há uma purga em curso e o que está a ser purgado, enquanto escrevo, persegue o teu perdão. Porém, estou ciente de que, entre as palavras escritas, não perduram argumentos que se bastem a si próprios. Pelo que vi em Berlim, ainda hoje o abandono de que foste vítima continua a marcar o teu espírito com a sua fome. O empregado traz-me um café e um croissant e não se vai embora sem antes me dizer, quase em surdina, que a vida exige que nos mantenhamos fiéis à esperança.”

Fintando a linha cronológica que une os romances que Ana Cristina Silva nos vem oferecendo desde que em 2002 escreveu “Mariana, Todas as Cartas”, detenho-me nestas “Cartas Vermelhas” que me agarram com a força dos grandes dramas. Explorado de forma inteligente, o contexto histórico do livro cobre um arco temporal à sombra do qual se abrigam alguns dos mais importantes acontecimentos da História do século XX, convidando o leitor a espreitar os ambientes de suspeição nas sedes do poder Estalinista, a barbárie fratricida da Guerra Civil de Espanha ou as memórias dos cárceres da polícia política do Estado Novo. Mas é na capacidade da autora em criar personagens complexas e em mostrar a verdade que se esconde por detrás das aparências que reside a grande força deste livro. Ao longo das suas páginas, conheceremos Carol e com ela viveremos um percurso de militância dedicada, curta mas intensa, feito de forças e certezas na afirmação das suas convicções mas onde se vai insinuando a dúvida quanto às motivações e consequências de muitos dos seus actos.

Escrito sob a forma de romance autobiográfico, “Cartas Vermelhas” inspira-se na vida de Carolina Loff da Fonseca, destacada militante e dirigente do Partido Comunista Português nos anos 30. Essa mesma Carol, cuja vida pessoal adopta traços misteriosos e polémicos ao envolver-se amorosamente com Júlio de Almeida, agente da PIDE que trabalhava no seu processo e com o qual chegou a viver. Desenganem-se, porém, aqueles que vão em busca da “história de uma militante comunista que se apaixona por um inspector da PIDE”, como é sugerido na capa do livro. Felizmente para o leitor, a chamada de capa não passa de um apontamento editorial infeliz. “Cartas Vermelhas” é muito mais do que isto, o caso entre os dois amantes a ser ventilado só nas páginas finais do livro e a assumir contornos de um “fait-divers” cujas maiores consequências acabam por ser o afastamento do inspector dos quadros da polícia política e a expulsão de Carol das fileiras do PCP no início da década de 40.

Alternando a narrativa na terceira pessoa e, em capítulos mais curtos, na primeira pessoa, como se de reflexões pessoais se tratasse, “Cartas Vermelhas” sabe encontrar o ritmo certo para manter viva a atenção do leitor. A angústia de Carol quanto à figura de Helena, a filha deixada para trás por entre as convulsões sociais e políticas que abalaram o Mundo, atravessa o livro sem beliscar o seu interesse, antes permite vislumbrar o drama que se esconde em certas opções pessoais, levando-as a atingir uma dimensão sacrificial a roçar o insustentável. Na duplicidade da figura de Carol, naquilo que na verdade é e nas versões de si que deve assumir para levar por diante as missões que lhe são confiadas, reside o fascínio do livro. As várias camadas de Carol e a forma como se potenciam ou anulam são desvendadas com enorme cuidado e sensibilidade, revelando uma personagem misteriosa e apaixonante. Um livro que nos mostra o quão tortuosos podem ser os caminhos da emoção, quando a razão que nos cerca se mostra contaminada pela intimidação e pelo horror.

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