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sábado, 19 de junho de 2021

LIVRO: "Paisagens Transgénicas"



LIVRO: “Paisagens Transgénicas”,
de Álvaro Domingues
Ed. Museu da Paisagem, Maio de 2021


“(…) É isso a paisagem. Um artefacto político de elevado potencial narrativo e de confrontação entre interesses diversos, indicador de mal-estar (e às vezes de autoestima coletiva classificada pela UNESCO), revelador de polémicas “paisagificadas”, aferidor constante do consenso (menos) ou do dissenso (muito mais) sobre o que somos coletivamente - sociedade e território.”

Depois da ficha técnica e de uma breve sinopse, “Paisagens Transgénicas” abre-se no olhar de Álvaro Domingues, traduzido em imagens onde os grandes espaços naturais, de um verde a perder de vista, apresentam-se desfigurados por alguns dos mais impactantes símbolos deste mundo novo e global, das monoculturas intensivas às energias renováveis ou ao uso abusivo dos plásticos. Será este o ponto de partida de um livro que, com as suas pouco mais de cem páginas, faz assentar os seus propósitos nos conceitos de “paisagem”, “transgénicos” e “identidade”, complementando-os com sete textos que o autor escreveu para o jornal Público ao longo de 2019 e oferecendo-nos, ainda, um conjunto de belíssimas imagens onde a paisagem, por força das alterações que o homem fez questão de introduzir no seu “código genético”, se revela numa amálgama desconcertante de elementos, à primeira vista, ilógicos e absurdos. Virada a última página, perceberemos que a nossa maneira de vermos o mundo dificilmente voltará a ser a mesma.

Se há aspecto que merece ser valorizado neste livro de Álvaro Domingues é a clareza com que o autor expõe as suas ideias sobre um assunto que lhe vem merecendo particular atenção desde sempre e que se traduz, entre outras publicações, nos incontornáveis “A Rua da Estrada” (2009), “Vida no Campo” (2012) e “Volta a Portugal” (2017). Metade livro de fotografia, metade ensaio, “Paisagens Transgénicas” tem essa enorme virtude de nos pôr a olhar para as coisas de maneira diferente. Implicitamente, Álvaro Domingues reforça a mensagem que vem dos seus livros anteriores, aconselhando o leitor a romper com o preconceito e a convencer-se de que “a Aldeia Típica vive no Instagram”. Não mais a dicotomia rural-urbana, cidade-campo ou litoral-interior. “Cidade é apenas um imaginário que ficou de nomes, acontecimentos e séculos de aglomerações apinhadas dentro de muralhas. O que agora domina, em Portugal e no planeta, é a urbanização, uma espécie de constelação de edifícios e redes de sistemas infra-estruturais, ora rarefeita, ora concentrada, ora difusa, ora resumida a pequenos episódios, ora espalhada por territórios imensos onde só pelas placas e pelo GPS se vai sabendo em que município se está ou em que lugar que tenha nome.”

Ao falar-nos de “paisagem transgénica”, Álvaro Domingues leva-nos ao encontro das palavras de José Mário Branco: “Entre a rua e o país vai o passo de um anão”. Levando a discussão para a uma escala de grandeza maior, o autor reconhece na globalização “o nome que se dá ao capitalismo global em modo desorganizado”, dizendo-a responsável por todas estas “combinações surpreendentes que não cessam de nos espantar”. À luz da ciência, é inegável que existe uma clara relação de causa e efeito entre a exuberante mancha de amendoeiras que desponta no Alqueva e o problema crítico em que a água se tornou para a Califórnia. Sempre com uma pontinha de ironia a apimentar o discurso, Álvaro Domingues lembra que “as raças apuram-se com os prodígios técnicos da manipulação transgénica e de outras engenharias biológicas”, pelo que não devemos estranhar esta apropriação do conceito de transgenia e a sua aplicação na paisagem, esse “sismógrafo de alta precisão” que nos dá conta de toda e qualquer mudança. Imbuídos de um sentimento nostálgico, falamos em estrago, descaracterização e perda de autenticidade, mas talvez devêssemos falar de evolução, progresso e futuro. Sem grandes dramas ou inquietações, sustenta Álvaro Domingues: “No exercício da circulação, deve-se reparar sempre em tudo o que está nas rotundas. É preciso controlar, rodear cuidadosamente, estar atento e seguir”.

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