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sexta-feira, 16 de abril de 2021

LIVRO: "A Varanda do Frangipani"



LIVRO: “A Varanda do Frangipani”,
de Mia Couto
Ed. Editorial Caminho, 1996 (6ª edição, Junho de 2006)


“O culpado que você procura, caro Izidine, não é uma pessoa. É a guerra. Todas as culpas são da guerra. Foi ela que matou Vasto. Foi ela que rasgou o mundo onde a gente idosa tinha brilho e cabimento. Estes velhos que aqui apodrecem, antes do conflito eram amados. Havia um mundo que os recebia, as famílias se arrumavam para os idosos. Depois, a violência trouxe outras razões. E os velhos foram expulsos do mundo, expulsos de nós mesmos.”

A guerra acabou nessa imensa varanda sobre o Índico que é Moçambique e os homens preparam-se para embrulhar em glória o carpinteiro Ermelindo Mucanga e fazer dele um herói nacional. Outrora “um vivo de patente, gente de autorizada raça”, Ermelindo Mucanga jaz agora morto e enterrado bem fundo no quintal da fortaleza colonial onde trabalhou, por vizinhos apenas uma toupeira e uma magrita frangipaneira com suas perfumosas flores. Já se havia resignado à sua sorte de defunto que espera as noites de chuva para sonhar e eis que se vê de súbito seduzido pela possibilidade de se separar dos seus restos imortais e, xipoco que sai da morte, desumbilicar para a vida. Irá o carpinteiro deixar a prisão da cova e transitar para a prisão do corpo?

Uma mão cheia de velhos, uma enfermeira jovem, um polícia. Um crime. Mia Couto não precisa de muitos mais ingredientes para “cozinhar” um livro que nos vem dizer que a verdade e o conhecimento residem nas palavras dos mais velhos. Apartados das suas famílias por força de uma guerra que virou irmãos contra irmãos, eles veem as suas vidas extinguir-se sem terem a quem passar o seu saber. Vistos como trabalho escusado e despesa inútil, são afastados dos olhares da sociedade, encerrados em lares que mais semelham prisões, todo um património humano, de histórias e memórias feito, condenado a desaparecer para sempre.

No seu jeito único de escrever, as frases pontuadas por neologismos – cabisbaixito, enfervescido, fraqueleza, luzinhando, vaivências, trestrapalhar, chamatriz, redondura ou milibrilhos são apenas algumas dessas palavras com tanto de imaginativo como de belo –, Mia Couto compõem um conjunto de quadros de enorme valor e significado. Numa prosa de candura feita, terna e sensível como terno e sensível é o sopro de vida que anima estes velhos, “A Varanda do Frangipani” é um conto de embalar. Nele se descobrem mundos novos, de cores vivas e cheiros fortes. São mundos que muito devem ao passado e às tradições, mundos que são história e que são memória. Que pedem que olhemos para eles, que os acarinhemos e preservemos, que os amemos. Porque são nossos, também; e isso não podemos ignorar.

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