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domingo, 11 de abril de 2021

LIVRO: "Uma Parte Errada de Mim"



LIVRO: “Uma Parte Errada de Mim”,
de Paulo M. Morais
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Casa das Letras, Setembro de 2016


“Traçar objetivos, definir rumos, inventar caminhos, sim. Mas percorrê-los hoje. Se hoje precisares de chorar, chora. Se hoje precisares de rir, ri. Se hoje precisares de descansar, descansa. Se hoje precisares de amar, ama. Se hoje precisares de cumprir tarefas, cumpre. Se hoje precisares de mudar algo, muda. Faz o que tiveres de fazer hoje, mas tenta evitar o dramatismo patético do “viver-cada-dia-como-se-fosse-o-último”. Os falhanços são tão relevantes como os sucessos; os passos minúsculos são tão importantes como os gigantes. Ambos formam o caminho, validam a certidão de renascido, enunciam o aqui e agora.”

“Annus horribilis” foi a expressão encontrada por Paulo M. Morais para descrever um tempo de incertezas, revoltas, angústia e dor. Chegava ao fim uma união de doze anos, o trabalho teimava em não aparecer, a casa fora posta à venda, a guarda da filha regia-se por um “semana sim semana não”. O cansaço aumentava, as dores à volta da cintura também. Os sinais de que algo de errado se passava avolumavam-se. O diagnóstico não tardaria a surgir. Um linfoma. O escritor torna-se, oficialmente, um doente oncológico. Um novo período da sua vida está prestes a começar. Ele propõe-se aceitá-lo, vivê-lo, relatá-lo. Partilhá-lo. O resultado é “Uma Parte Errada de Mim”, a vida feita de ciclos a dizer-nos que o dia especial é sempre aquele em que estamos.

Fecho o livro com um estrondo abafado. Agora que termino a sua leitura, faço um rápido balanço destas pouco mais de trezentas páginas lidas em dois dias e percebo os comos e os porquês de ter visto alterar-se a minha perspectiva enquanto leitor. Profissional de saúde há mais de três décadas, o meu “eu-enfermeiro” abraçou os primeiros capítulos vendo a doença e não o doente: Um linfoma não-Hodgkin e não propriamente um Paulo. No meu mundo de hospitais feito, o olhar deu preferência ao “conforto” dos intermináveis corredores, da tinta a descascar, das salas inóspitas, das longas esperas, das palavras dos médicos, dos gestos dos enfermeiros. Quis evitar o incómodo de tudo o resto. Aos poucos, porém, fui escutando aquilo que a princípio não passava de um sussurro, para acabar por se impor num grito surdo: “ – Olha para mim, porra!”

Despojada de artifícios, tornada sólida pela verdade que dela se derrama, a escrita de Paulo M. Morais atinge-nos em cheio com a força de um veredicto para o qual ninguém está preparado, de um dreno que trespassa o peito e se dispõe a extrair o máximo de líquido de um pulmão, das incontáveis horas em solidão ao longo dos ciclos de quimioterapia, dos líquidos cor de laranja que invadem as veias, das náuseas e vómitos dos dias seguintes. Mas o tempo da sua escrita é também o tempo de um enleio. É o braço sobre o ombro ao mostrar-nos o quão importante é o presente. É uma frase, num túnel, a traçar o destino. É o silêncio denso de uma noite estrelada no Talasnal. É a avó Nana a dizer-nos o quanto gostou e gosta de viver. É um pessegueiro chamado Maria. Resta a esperança de poder cruzar-me com Paulo M. Morais, “algures no tempo e no espaço, extirpados de pedaços errados, numa existência mais leve e mais serena. E possamos então trocar nomes e dar um abraço digno de velhos amigos.”

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