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domingo, 11 de abril de 2021

LIVRO: "Caderno de Memórias Coloniais"



LIVRO: “Caderno de Memórias Coloniais”,
de Isabela Figueiredo
Ed. Editorial Caminho, Julho de 2015 (9ª edição, Setembro de 2020)


“Os carniceiros foram todos tão bonzinhos que quando matavam o cabrito davam as vísceras aos pretos. A tripa. A pele. Pagavam-lhes o trabalho escravo com porrada mais a farinha, que comiam com as mãos, aqueles porcos negros; e se os faziam trabalhar sete dias por semana, sem horário, era apenas o legítimo tratamento de que precisavam os preguiçosos. Um favor que o branco lhes fazia. Civilizar os macacos.”

Coragem. São várias as palavras que me assaltam ao longo da leitura deste “Caderno de Memórias Coloniais”, mas nenhuma parece impor-se com tanta força, com tanta intensidade, como esta: Coragem. Coragem, pela partilha de histórias e memórias que, explicitamente e sem rodeios, desmontam o discurso colonialista reinante e a sua inaceitável visão unilateral. Coragem, pela forma como, sem pudor e sem mágoa, mergulha no seu mais íntimo, dele extraindo consciência, transparência e verdade. Coragem, pelo saber ser e resistir na descoberta de si e do seu mundo, aproximando-se e distanciando-se da figura paterna para melhor destrinçar o que é amor e o que é ódio.

Levada pelo curso da História a viver os estertores do colonialismo português, Isabela Figueiredo “regressa” à Lourenço Marques das décadas de 60 e 70 do século passado. Olha a sua cidade natal e vê nela um “largo campo de concentração com odor a caril”. Não percebe o porquê de não poder andar descalça na rua, de a proibirem de vender mangas na soleira da porta, de brincar com os meninos negros da vizinhança ou de se sentar numa esplanada e ver os brancos a saborear o melhor uísque com soda e gelo e a debicar camarões, enquanto os criados negros aguardam uma gorjeta que apenas surgirá “se tivessem mostrado os dentes, sido rápidos no serviço e chamado patrão.” É esta criança a caminho da adolescência que vai tomando consciência das diferenças que a cor da pele induz, ao mesmo tempo que vê agigantar-se, de um lado, a prepotência e a impunidade do branco e, do outro, a raiva surda no olhar amarelo e nos punhos cerrados do negro.

Tal como em “A Gorda”, Isabela Figueiredo demonstra não ter papas na língua na altura de arrumar dentro de si um passado onde abundam mentiras e contradições. Um passado cuja dor não se esgota no deixar para trás uma África de todas as cores, antes se agrava nos tons cinza que a esperam à chegada ao rectângulo, retornada sem o ser. “Andaste a roubar os pretos e julgas que havemos de te servir camarão num prato de ouro!”, escuta, ao mesmo tempo que lhe põem à frente um prato de bofe com arroz. Então diz-nos que todos os lados possuem uma verdade indesmentível e que “nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa, para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar.” Mostra-nos como as diferenças nascem e crescem, se acentuam, se agudizam, se confrontam. Diz-nos que é preciso tempo até cuspirmos no dever e na honra e na fidelidade e assim saldarmos as dívidas que pensámos dever. A bem ou mal!

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