Páginas

domingo, 4 de abril de 2021

LIVRO: "Contra Mim"



LIVRO: “Contra Mim”,
de Valter Hugo Mãe
Ed. Porto Editora, Outubro de 2020


“Alguma noite, o meu pai chamou: anda ver o que este homem está a dizer. E era um homem esquisito, que falava com urgência. Eu e o meu pai, disfarçados de sermos muito machos, a desviar o rosto para as paredes vazias, ficámos de olhos em água ao ouvir o Charlie Chaplin. Não parecia nada um ditador. Parecia um porte. Ou um súbito candeeiro aceso nas palavras. Os meus heróis vão ser estes, pensei. Os improváveis que se levantam humanos contra toda a pressão.”

Perto de completar “cinquenta anos de idade, quarenta anos de Caxinas, que se tornou, sim, a Capital, e vinte e cinco anos de livros publicados”, Valter Hugo Mãe surpreende-nos com uma autobiografia que remete para um tempo que se estende pelos seus primeiros anos de vida, até ao final da adolescência. Resultado de um conjunto de textos “sem muito destino”, escritos esparsamente ao longo de quinze anos e coligidos num corpo único, enxuto, para que possam ser lidos com a mesma lógica com que se lê um certo romance, “Contra Mim” é um delicioso exercício da memória, feito de subjectividade e emoção, a meditação suscitada tornando nítidos “os instantes onde preponderam as decisões mais endémicas e modeladoras de todas”.

Nascido em Saurimo, Angola, nos idos de 71, Valter Hugo Mãe é um dos muitos filhos do retorno. Paços de Ferreira, a terra que o acolheu no regresso dos pais à metrópole e onde viveu até aos dez anos de idade, será o palco das suas primeiras recordações, um tempo de experiências iniciáticas, avanços, conquistas e ilusões. Algumas desilusões, também. Moldadas na candura do seu olhar de criança, as memórias do autor desenterram Cristos de luz resgatados do lixo, folares de Páscoa à volta do pescoço, Bíblias envoltas em panos de linho, milagres do São Bentinho, um chocolate como parte do urgente salário, o mistério da alegria própria deixado por Deus em cada pessoa.

A segunda parte do livro tem lugar nas Caxinas, aldeia piscatória onde o pai do autor se estabeleceu com a família no início dos anos 80, explorando um café. Num cenário radicalmente diferente, marcado pelo tanto que o mar dá e rouba, Valter Hugo Mãe irá entrar na adolescência com a ameaça da onda que tudo destrói a pender-lhe sobre a cabeça. Numa terra pequena, o mundo faz-se grande. É tempo de comprar o primeiro livro, aprender o beijo, ouvir os Rolling Stones, ler António Ramos Rosa, assistir no Cine Neiva a um filme pornográfico, ver desaparecer um homem nas ondas e perceber que a santidade não precisa de um caminho organizado.

Este mergulho de Valter Hugo Mãe no seu mais íntimo é um convite ao leitor para que o faça também. Sem embaraços nem reservas. Mais do que de verdade, é de bondade e de espiritualidade que estão carregadas as palavras do autor, naquilo que revelam do eu mais fundo. Este é o tempo da curiosidade que se sobrepõe aos medos, dos mitos derrubados um por um, das fronteiras imaginárias vencidas, do fruto proibido tomado nas mãos, levado à boca e saboreado com deleite e demora. Tal como Valter Hugo Mãe, não somos mais os meninos de belíssimas intenções que fomos, essas crianças de uma pureza que ainda hoje nos inspira. Mas queremos muito ser ao menos a memória dessa pureza. A memória de um tempo em que havia, em cada um nós, a promessa intensa de poeta à solta.

Sem comentários:

Enviar um comentário