TEATRO: “Passa-Porte”,
de André Amálio
Co-criação e interpretação |
André Amálio, Selma Uamusse e Tereza Havlíčková
Movimento | Tereza Havlíčková
Interpretação musical | Selma
Uamusse
Espaço cénico | André Amálio e
Tereza Havlíčková
Produção | Hotel Europa
90 Minutos | Maiores de 6 anos
Centro de Artes de Ovar
13 Out 2019 | dom | 17:00
Uma mulher viaja pelo Gana e visita a
Fortaleza de Elmina, edifício histórico inscrito na lista do
património da humanidade classificado pela UNESCO e um dos mais
importantes pontos de escala na rota de escravos do Atlântico. Dessa
visita guarda a atmosfera tensa que emana daquelas paredes, a
brutalidade das situações apenas adivinhadas e um cheiro a sangue
que teima em resistir à passagem do tempo, em contraste com o
proselitismo cristão e as boas intenções de D. Afonso V e do
lendário Preste João. Duas semanas mais tarde, de regresso a
Londres, a mulher assiste a uma aula do programa de mestrado MA
Performance Making na Goldsmiths University. Há quinze minutos que o
professor discorre sobre a preponderâncias de Portugal no tráfico
de escravos quando entra na sala um aluno, por sinal português, meio
perdido. Senta-se, procura situar-se, mas mais perdido fica quando as datas que vão sendo
avançadas - 1441, 1444, 1455, 1481, ... – lhe são de todo desconhecidas. Para quem tinha as suas referências na tomada de Ceuta em
1415, na passagem do Cabo das Tormentas em 1488 ou na descoberta do
caminho marítimo para a Índia em 1498, nada do que ali era dito
parecia fazer sentido. Ou talvez fizesse...
Estávamos em 2008 e foi desta forma
que André Amálio e Tereza Havlíčková se conheceram. Ela tinha visitado o Gana, ele era o aluno perdido. Esse
conhecimento foi o ponto de partida de uma sólida relação de
cumplicidade que perdura até aos dias de hoje e também o nascimento de um intenso e profícuo
projecto artístico, na fronteira entre a dança, a performance e o
teatro, ao qual resolveram dar o nome de Hotel Europa. Do
recém-descoberto cruzamento de interesses e da sua obstinação em re-escrever a história colonial portuguesa através do teatro
documental, surgiram sucessivamente “Portugal não é um País
Pequeno” (2015), “Passa-Porte” (2016), “Libertação”
(2017), “Amores Pós-Coloniais” (2019) e o muito recente “Os
Filhos do Colonialismo”, estreado na Culturgest em finais do
passado mês de setembro, todos eles com uma matriz comum baseada
numa extensa e contrastante recolha de testemunhos. Em palco, olhos
nos olhos com o público, cabe aos próprios entrevistados a partilha
das suas histórias e memórias, atestando a forma como o passado
colonial se reflecte em Portugal e na Europa de hoje e fazendo vincar o
muito que há a fazer com vista a uma descolonização plena, tanto
da história como do pensamento.
Usando como termo de comparação o
espectáculo “Amores Pós-Coloniais”, que tive oportunidade de
ver no âmbito do FITEI 2019 e sobre o qual, oportunamente, me
debrucei [AQUI],
direi que este “Passa-Porte”, nos seus pressupostos narrativos, encerra uma verdade mais crua, que fere e
dói. Em ambas as peças, há gente que tudo deixou para trás, mas percebe-se aqui mais revolta e menos
resignação, uma dor que não se extingue, um apaziguamento
à espera de tempo. A estes expatriados, refugiados, retornados ou simples apátridas, sobra-lhes em resistência e privação aquilo
que lhes falta em compreensão e humanidade. É essa a ideia que os
três actores em palco conseguem fazer passar, através de um
dispositivo cénico extraordinariamente eficaz e de um despojamento
em palco genuíno e sincero, que confere à peça uma emoção muito
forte. André Amálio, Tereza Havlíčková e Selma Uamusse são
exímios na forma como se desdobram nos protagonistas de histórias
onde, repetidamente, se insiste em tomar banho vestido ou em proteger
o soalho duma casa que é de outros, onde um café e um cigarro são
impróprios numa senhora, onde há negros “assimilados” e filhos
impedidos de chamar pais aos próprios pais, onde a descolonização em Angola e Moçambique deu lugar a longas e sangrentas guerras civis, onde uma noite de festa culminou no assassínio de um
“cabo-verdiano” que não o era, onde há bolos de arroz que não levam arroz ou onde os passaportes, tal como as pessoas, valem muito ou, pelo contrário, não
têm qualquer valor!
[Foto: José Frade e Mariana Silva / hoteleuropatheatre.com]
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