CONCERTO: Bia Ferreira
Café Concerto do Cine-Teatro de
Estarreja
08 Fev 2019 | sex | 22:00
Chama-se Bia Ferreira, tem 25 anos e
faz da música e da palavra um meio de elevar bem alto a bandeira do
movimento anti-racismo no Brasil. Decerto que a cantora preferiria
não tocar em assuntos tão incómodos, mas quando um jovem
preto é morto no Brasil a cada 23 minutos às mãos da polícia, não
há como calar a revolta. “É porque o meu povo está morrendo que
eu escolhi falar sobre isso, para que mais pessoas queiram lutar
junto comigo e estas mortes absurdas possam acabar”, diz, olhos nos
olhos, com a determinação e a força de quem tem a plena
consciência de que o seu corpo paga o preço por ser preto. Como um
murro no estômago, estas primeiras palavras de Bia Ferreira colheram
de surpresa o público que se juntou na noite de ontem no Café
Concerto do Cine-Teatro de Estarreja, predispondo-o para um
espectáculo que chamou para a primeira linha as questões sociais,
contagiando a plateia pela força das mensagens e pela frontalidade,
sinceridade e energia desta cantora, compositora e activista
brasileira.
“Grito Das Bee” foi o pontapé de saída dum concerto memorável, Bia Ferreira a reforçar a mensagem inicial e
assumindo-se a voz daqueles que não têm voz: “Pela tia que é
silenciada / E dizem que só a pia é o seu lugar / Pela menina que é
da favela / É violentada e não pode estudar / Pela preta
objectificada / Gostosa, sarada, que tem que sambar / A dona de casa
limpa, lava e passa / Mas fora do lar não pode trabalhar”. O tema
seguinte, “De Dentro do Ap”, fala da desigualdade e da diferença
de oportunidades dadas a brancos e pretos, denunciando a hipocrisia e
a passividade com que este estado de coisas é aceite e gritando que
não é possível continuar a adiar o inadiável. No tema seguinte,
Bia Ferreira abordou a questão da orientação sexual vindo-nos
dizer que “quando vemos a guerra por tudo quanto é lugar, o ódio
por tudo o que é lugar, a maldade por tudo quanto é lugar, não faz
sentido julgarmos alguém que está amando”. E acrescenta: “Eu
devo ser uma pessoa muito desonesta porque eu sou homossexual”. Daí
“Levante a Bandeira do Amor”, as palavras como carícias: “Então
ame, e que ninguém se meta no meio / O belo definiu o feio pra se
beneficiar / Ame e que ninguém se meta no meio / Por que amar não é
feio, o feio é não amar”.
O concerto prosseguiu com a cantora a chamar ao palco Doralice, sua companheira na vida de todos os dias,
e juntas a interpretarem “Só Você Me Faz Sentir”, “Preta em
Movimento” e “Miss Beleza Universal”, três temas mais
intimistas mas não menos impactantes, muito belos e cantados de
forma particularmente sentida, Marielle Franco e Chico Science
presentes: “Miss beleza universal / É ditadura! / Quanta opressão
/ Não basta ser mulher / Tem que estar dentro do padrão / Foda-se o
padrão!”. De incómodo em incómodo, “Diga Não” fala do
“genocídio do povo preto, que é um genocídio institucionalizado
e estrutural no Brasil”, as palavras a darem conta da terrível
realidade: “Eu não aguento mais / Ver meus irmãos pretos
estampados mortos nos jornais / Eu não aguento mais / Ver meus
irmãos com cento e onze tiros dados por policiais”.
O concerto caminha para o final e é
agora a vez de Bia Ferreira chamar ao palco Michele Mara, “a maior
imitadora de Aretha Franklin na América Latina”, um título que
teve oportunidade de comprovar num fabuloso improviso que pôs toda a
gente a dançar na sala. De novo com Doralice em palco, as três
mulheres fecharam o concerto em beleza com “Cota Não É Esmola”, um tema lançado no ano passado e sobre o qual Caetano
Veloso disse ter ficado “com vontade de pedir a todos os brasileiros
para ouvirem Bia Ferreira”. Nele, a cantora vem em defesa do
sistema de quotas raciais, reforçado pelo governo de Lula da Silva,
que permitiu aumentar o acesso à universidade de estudantes negros,
mulatos e indígenas de classes mais baixas e que é agora posto em
causa pelo governo de Jair Bolsonaro. Numa espécie de “encore”,
Bia Ferreira cantou ainda “Eu Boto Fé”, o público aplaudindo de
pé, a certeza de que ninguém sairia da sala igual ao que
entrara. “A cantiga é uma arma de pontaria”, cantava José Mário
Branco. A pontaria de Bia Ferreira é certeira ao coração e à
mente dos que a escutam. Valeu a pena passar uma hora assim, debaixo
de fogo!
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