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sábado, 9 de fevereiro de 2019

CONCERTO: Bia Ferreira



CONCERTO: Bia Ferreira
Café Concerto do Cine-Teatro de Estarreja
08 Fev 2019 | sex | 22:00


Chama-se Bia Ferreira, tem 25 anos e faz da música e da palavra um meio de elevar bem alto a bandeira do movimento anti-racismo no Brasil. Decerto que a cantora preferiria não tocar em assuntos tão incómodos, mas quando um jovem preto é morto no Brasil a cada 23 minutos às mãos da polícia, não há como calar a revolta. “É porque o meu povo está morrendo que eu escolhi falar sobre isso, para que mais pessoas queiram lutar junto comigo e estas mortes absurdas possam acabar”, diz, olhos nos olhos, com a determinação e a força de quem tem a plena consciência de que o seu corpo paga o preço por ser preto. Como um murro no estômago, estas primeiras palavras de Bia Ferreira colheram de surpresa o público que se juntou na noite de ontem no Café Concerto do Cine-Teatro de Estarreja, predispondo-o para um espectáculo que chamou para a primeira linha as questões sociais, contagiando a plateia pela força das mensagens e pela frontalidade, sinceridade e energia desta cantora, compositora e activista brasileira.

“Grito Das Bee” foi o pontapé de saída dum concerto memorável, Bia Ferreira a reforçar a mensagem inicial e assumindo-se a voz daqueles que não têm voz: “Pela tia que é silenciada / E dizem que só a pia é o seu lugar / Pela menina que é da favela / É violentada e não pode estudar / Pela preta objectificada / Gostosa, sarada, que tem que sambar / A dona de casa limpa, lava e passa / Mas fora do lar não pode trabalhar”. O tema seguinte, “De Dentro do Ap”, fala da desigualdade e da diferença de oportunidades dadas a brancos e pretos, denunciando a hipocrisia e a passividade com que este estado de coisas é aceite e gritando que não é possível continuar a adiar o inadiável. No tema seguinte, Bia Ferreira abordou a questão da orientação sexual vindo-nos dizer que “quando vemos a guerra por tudo quanto é lugar, o ódio por tudo o que é lugar, a maldade por tudo quanto é lugar, não faz sentido julgarmos alguém que está amando”. E acrescenta: “Eu devo ser uma pessoa muito desonesta porque eu sou homossexual”. Daí “Levante a Bandeira do Amor”, as palavras como carícias: “Então ame, e que ninguém se meta no meio / O belo definiu o feio pra se beneficiar / Ame e que ninguém se meta no meio / Por que amar não é feio, o feio é não amar”.

O concerto prosseguiu com a cantora a chamar ao palco Doralice, sua companheira na vida de todos os dias, e juntas a interpretarem “Só Você Me Faz Sentir”, “Preta em Movimento” e “Miss Beleza Universal”, três temas mais intimistas mas não menos impactantes, muito belos e cantados de forma particularmente sentida, Marielle Franco e Chico Science presentes: “Miss beleza universal / É ditadura! / Quanta opressão / Não basta ser mulher / Tem que estar dentro do padrão / Foda-se o padrão!”. De incómodo em incómodo, “Diga Não” fala do “genocídio do povo preto, que é um genocídio institucionalizado e estrutural no Brasil”, as palavras a darem conta da terrível realidade: “Eu não aguento mais / Ver meus irmãos pretos estampados mortos nos jornais / Eu não aguento mais / Ver meus irmãos com cento e onze tiros dados por policiais”.

O concerto caminha para o final e é agora a vez de Bia Ferreira chamar ao palco Michele Mara, “a maior imitadora de Aretha Franklin na América Latina”, um título que teve oportunidade de comprovar num fabuloso improviso que pôs toda a gente a dançar na sala. De novo com Doralice em palco, as três mulheres fecharam o concerto em beleza com “Cota Não É Esmola”, um tema lançado no ano passado e sobre o qual Caetano Veloso disse ter ficado “com vontade de pedir a todos os brasileiros para ouvirem Bia Ferreira”. Nele, a cantora vem em defesa do sistema de quotas raciais, reforçado pelo governo de Lula da Silva, que permitiu aumentar o acesso à universidade de estudantes negros, mulatos e indígenas de classes mais baixas e que é agora posto em causa pelo governo de Jair Bolsonaro. Numa espécie de “encore”, Bia Ferreira cantou ainda “Eu Boto Fé”, o público aplaudindo de pé, a certeza de que ninguém sairia da sala igual ao que entrara. “A cantiga é uma arma de pontaria”, cantava José Mário Branco. A pontaria de Bia Ferreira é certeira ao coração e à mente dos que a escutam. Valeu a pena passar uma hora assim, debaixo de fogo!

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