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quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

LIVRO: "Corações Irritáveis"



LIVRO: “Corações Irritáveis”,
de João Paulo Guerra
Ed. Clube do Autor, Março de 2016


“A Mariana, a Georgina e o Miguel não foram à guerra. Mas é como se tivessem ido. Mariana e Georgina são mulheres de ex-combatentes em Moçambique e na Guiné, o pai de Miguel fez a guerra em Angola. E agora, vinte anos depois do fim das guerras coloniais, a paz não chegou a estas mães e filhos, como aos lares de todas as outras vítimas de perturbações pós-traumáticas do stresse de guerra. E eis que hoje há indícios claros de que já existe uma segunda geração de doentes, mulheres e filhos de combatentes que contraíram o stresse de guerra por contágio.”


Não é inocente a escolha desta passagem do livro “Corações Irritáveis”, excerto duma pretensa peça jornalística inserta na narrativa e que remete para a figura do escritor João Paulo Guerra enquanto homem da rádio e dos jornais, com diversos prémios de jornalismo no currículo e uma boa mão cheia de livros de pesquisa jornalista e histórica, de crónicas e de ficção publicados. Neste seu mais recente romance, o autor retoma o assunto da Guerra do Ultramar, vestindo-o com o manto da ficção para melhor vincar o quanto de verdade se esconde nas feridas dum conflito que, ao longo de treze anos, envolveu 150.000 homens em Angola, Guiné e Moçambique, e registou oficialmente o trágico saldo de 8.289 mortos entre as tropas portuguesas. Um conflito que, na sua vertente diplomática, chegou ao fim com o 25 de Abril de 1974 e posterior independência das ex-Colónias, mas cujos efeitos marcam, ainda hoje, o quotidiano de muitos milhares de portugueses.

Entidade clínica identificada no século XIX como “coração irritável”, a Perturbação Pós-Stresse Traumático de guerra pode ser tida como a grande figura do livro. É desta doença que o autor nos fala, das formas que pode tomar e do sofrimento que acarreta, socorrendo-se para tal dum conjunto de personagens fictícias, em situações extremas igualmente ficcionadas mas fortemente identificadas com o real, daí retirando o livro a sua maior força. Sem conseguirem ultrapassar os traumas por que passaram, estas personagens vão lentamente contagiando aqueles que lhes são mais próximos, até encontrarem na morte a única forma de libertação. Aos ex-combatentes, junta João Paulo Guerra a figura de Adélia, a mulher de um deles, de Luís e Cecília, amigos próximos de Adélia, a inspectora Diamantina e a psicóloga Sofia Ramada, a partir dos quais oferece um conjunto de histórias que se vão entretecendo numa base de enorme rigor e verdade.

Colando a ficção à realidade, é na figura da inspectora que reside o verdadeiro motor da narrativa, os avanços e recuos da investigação a pautarem a trama do livro e a convocarem um interesse crescente. Mas, mais do que a carga emocional que se desprende de cada passagem, o que aqui está em causa é essa chamada de atenção para aqueles que se mostram incapazes de viver com as feridas do passado e alternam os seus dias entre a ansiedade e o pânico, entre o isolamento e o conflito. Duro e terno, na justa medida dos seus propósitos, “Corações Irritáveis” é um grito contra o esquecimento de certas verdades inconvenientes, um murro no estômago daqueles para quem a Guerra de África acabara lá longe num certo Abril e um apelo à coragem dos que calam, para que possam libertar-se do fardo que carregam e ponham cobro ao seu sofrimento e ao daqueles que com eles partilham dias de angústia e de raiva.

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