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segunda-feira, 15 de outubro de 2018

LIVRO: "A Manhã do Mundo"



LIVRO: “A Manhã do Mundo”,
de Pedro Guilherme-Moreira
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Maio de 2011


“É possível que das cidades, e das casas nas cidades, desapareçam as pessoas. E morram as casas. E morram as cidades. Mas de dentro das pessoas nunca desaparecem as suas casas ou as suas cidades, e haverá sempre uma memória para convocar.”


Em jeito de preâmbulo, partilharei três memórias. A primeira vai ao encontro do escritor Pedro Guilherme-Moreira, de cujo pensamento guardava a ideia de correr à frente das palavras, o discurso confuso, quase ininteligível, o próprio a desaconselhar os presentes na derradeira mesa do Festival Literário de Ovar a lerem-no. A segunda leva-nos ao 11 de Setembro de 2001 e à perplexidade perante as imagens que a televisão ia mostrando em directo nesse início de tarde em Portugal, as ideias desencontradas a entrechocarem-se na mente; depois a incerteza, as repercussões de tão tresloucado acto a ameaçarem vidas até aí pacatas; enfim o medo tornado palpável, as histórias da História de súbito tão mais vivas. A terceira e última é a de uma estante numa livraria da baixa do Porto, a deliciosa profusão de livros de autores portugueses que se alinham, o olhar a pousar nos títulos um a um e a acabar por se deter em “A Manhã do Mundo”. Pedro Guilherme-Moreira é o autor, o 11 de Setembro de 2001 o assunto. Decido-me a pôr de parte o preconceito e concedo confrontar-me de novo com a perplexidade, a incerteza e o medo. Compro o livro e começo a lê-lo de imediato.

A primeira impressão é de espanto. Não porque o primeiro avião acabasse de embater na Torre Norte do World Trade Center, dando início à série de trágicos acontecimentos que se saldariam na perda de mais de três mil vidas humanas e numa extensa cicatriz para sempre gravada no coração da América. Mas porque a escrita de Pedro Guilherme-Moreira é límpida, as suas ideias claras, a narrativa seguindo uma lógica indestrutível, as palavras a transmitirem, paradoxalmente, conforto e segurança. Pela possibilidade que só a ficção pode conceder, o autor acompanha, de forma serena e digna, os derradeiros momentos de uma mão cheia de pessoas, não o filme da vida de cada uma delas a rebobinar-se a uma velocidade vertiginosa, antes a forma de encarar o horror e ser capaz de manter a lucidez quando o leque de opções se escoa a cada segundo que passa.

A grande força do livro está em provar que ninguém é dono do seu próprio destino e que situações há para as quais não existem planos B. São pessoas erradas, no sítio errado, à hora errada, pessoas que, por esta ou aquela razão, poderiam estar a salvo no momento da tragédia. Ou, no verso da questão, pessoas que se encontram a salvo quando tudo acontece, apenas porque sim. Pessoas que poderiam ser qualquer um de nós, como bem se perceberá. Sem se deixar enredar num estéril jogo de “ses”, Pedro Guilherme-Moreira coloca o leitor do lado de quem nem sequer se dá conta da benção que é não ter de tomar decisões em situações-limite, levando-o a abraçar cada dia como se fosse o último e a ver a vida como uma dádiva. Surpreendente, perturbador, inteligente e dum humanismo que se palpa no virar de cada página, “A Manhã do Mundo” é um dos livros mais inspiradores que li nos últimos tempos. Naquela tarde, ao olhar para aquele estante, foi este o livro certo, no sítio certo, à hora certa!

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