CINEMA: “A Mulher que Morreu de Pé”
Realização | Rosa Coutinho Cabral
Argumento | Rosa Coutinho Cabral
Fotografia | Susana Gomes
Montagem | Francisco Costa, Rosa Coutinho Cabral, Rui Pedro Mourão
Interpretação | Alexandra Sargento, Carolina Bettencourt, Hugo Mestre Amaro, João Araújo, João Cabral, Joana Seixas, Leonor Cabral, Leonor Coutinho Cabral, Lídia Franco, Maria Galhardo, Mariana Pacheco Medeiros, Milagres Miranda Paz, Paula Guedes, Soraia Chaves
Produção | Rosa Coutinho Cabral
Portugal | 2025 | Documentário, Biografia | 113 Minutos | Maiores de 12 Anos
Vida Ovar - Castello Lopes
14 Set 2025 | dom | 19:00
Filha das ilhas e da insubmissão, Natália Correia nasceu em 1923, na graça atlântica de São Miguel, nos Açores. O mar ensinou-lhe, desde cedo, a vastidão do espírito, um traço vincado da sua personalidade, reforçado quando, ainda jovem, se fixou em Lisboa. Eram os anos de chumbo da ditadura e Natália trazia consigo a força telúrica dos vulcões e um verbo pronto a incendiar consciências, fazendo da palavra uma espada e da poesia, refúgio e revolta. Espírito indomável, desafiou as normas sociais e culturais da sua época e abraçou sempre a luta pela liberdade e pelos direitos humanos. A sua acção política e cívica fez dela a autora portuguesa mais censurada pela ditadura. Figura incendiária, tão mítica quanto lúcida, fez do Botequim um quartel boémio e da Assembleia da República um palco político, onde a sua verve cortante desconcertou os medíocres. Deputada entre 1980 e 1991, foi sempre maior do que os partidos — livre como os que sabem que a pátria é o poema. Morreu em 1993, mas ficou a sua chama: um rasto de paixão, lucidez e rebeldia cravado na pele da literatura portuguesa.
Desta mulher irreverente, crítica, visionária e livre, nos fala Rosa Coutinho Cabral em “A Mulher que Morreu de Pé”, ensaio cinematográfico através do qual a autora, também ela natural de S. Miguel, lhe rende uma sentida homenagem. Presente nas primeiras imagens, o cunho documental do filme depressa abre espaço à ficção, graças à reunião de um conjunto de actores que, a pretexto de um casting para uma peça de teatro centrada em Natália Correia, se reúnem para falar dela, encontrar-lhe particularidades menos evidentes, declamar a sua poesia, reproduzir os seus gestos e enriquecê-la com o seu olhar sensível e espírito acutilante. Eis, precisamente, o que Rosa Coutinho Cabral pretende para um filme que procura a presença invisível trazida pela câmara, pelo som, pela luz do cinema, para ir escavando as dores, os mitos, os fantasmas nascidos na vida e na obra da poetisa. Iguais a si próprios, os actores convocam para o seu modo de representar a figura de Natália, embora as personagens sejam o que menos importa à realizadora. Aquilo que realmente interessa é criar imagens que evoquem situações, deixando o caminho livre ao espectador para que, também ele, sinta a necessidade de “desenhar” a sua própria Natália.
Com “A Mulher que Morreu de Pé”, Rosa Coutinho Cabral assina um filme notável que foge aos moldes tradicionais do documentário, oferecendo uma abordagem ousada e profundamente sensível sobre a figura multifacetada de Natália Correia. Ao cruzar investigação documental, teatro, recriação ficcional e instalação visual, a realizadora propõe um exercício de cinema que ilumina, desconstrói e ressuscita a poetisa. O filme torna-se numa obra multidisciplinar, refletindo tanto sobre Natália como sobre o próprio acto de filmar, num registo íntimo de diário de bordo. Rosa Coutinho Cabral está presente ao longo de toda a narrativa: recorta, lê, entrevista, dirige, observa – como se costurasse memórias e imagens numa tentativa comovente de manter viva a presença e o pensamento da escritora. O casting de actores para a peça “Colheres de Prata” - que a autora / encenadora apresentou ao público nos Açores e na Madeira -, os testemunhos de amigos e estudiosos, as imagens de arquivo e as intervenções fantasmagóricas de Natália, constroem uma atmosfera única, só possível graças ao notável trabalho de realização. Ao dar palco às múltiplas “Natálias”, Rosa Coutinho Cabral celebra a sua imortalidade literária e humana, provando que o legado de Natália Correia ainda pulsa, tão urgente quanto necessário.