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quinta-feira, 3 de setembro de 2020

LIVRO: "Mãe, Promete-Me que Lês"



LIVRO: “Mãe, Promete-Me que Lês”,
de Luís Osório
Ed. Guerra e Paz Editores, Setembro de 2018


“Continuo ocupado comigo próprio e a preferir a tranquilidade ao ruído, imagino no silêncio, comecei a escrever-te esta carta numa noite em que percorri em sonhos despertos um túnel que parecia não ter fim, uma carta em que prometi não ter contemplações comigo, saldar as contas para que o túnel se possa, finalmente, iluminar e deixar de ter sombras e fantasmas, para que te possa ver novamente vestida com uma túnica que te ficava tão bem quando eras mais magra e passeávamos nas ruas de Campo de Ourique, apenas eu e tu, antes de te ter abandonado e seguido caminho para ser este aqui, o teu filho primeiro a quem chamavas Miguel.”

Miguel, perdoa-me o atrevimento, mas deixa-me tratar-te por tu. Há coisas que nos aproximam tanto que as formalidades soam como que deslocadas. Não que os acontecimentos que narras neste teu fortíssimo “Mãe, Promete-Me que Lês” tenham algo a ver comigo. De todo. Vê lá, sou mais velho do que tu dez anos e os meus pais ainda estão connosco. Os meus sogros também. Nenhum dos meus dezoito tios e tias faleceu, tão pouco a catrefada de primos. Não passei nunca pelo que passaste, nunca fiz o luto de nada. Mas a essência do que escreves nesta longa carta a uma mãe, a tua, que amaste e odiaste, fez com que muitas luzes se acendessem na minha cabeça e, não raras vezes, o meu coração se acelerasse muito para lá do normal. Ao ler-te, senti-me irmanado na tua dor, na tua dúvida, na tua súplica. Não por cumplicidade ou solidariedade, antes por identidade. Contigo, em ti, deixei-me conduzir a lugares que desconhecia, entrei no teu círculo familiar, apresentaste-me aos teus amigos. Contigo, em ti, chorei a partida dos teus, agora nossos. De outros, foste tu que partiste. E eu contigo. Também aí chorei. Para depois acabar de rastos a ler a tua carta e a perguntar-me que raio de gajo sou eu.

Sou dos muitos que, há muito tempo, tê leem e te ouvem (e se não te vejo é porque não vejo televisão há anos). Gosto muito do que escreves, pela força com que escreves, mas sobretudo porque há verdade no que escreves. Também porque muitos dos teus referenciais são igualmente meus, a começar pelos filhos. O André, por exemplo. Falaste nele no livro, falas nele, por estes dias, à conta do “Observação da Gravidade” e não deixarás de falar nele, nunca, sei-o bem. O mesmo sucede com os outros, com a Benedita, que podia estar já no livro, não fosse o Afonso intrometer-se. Falas deles com tanto orgulho, com tanto amor. O mesmo orgulho e o mesmo amor com que falo da Margarida, toda das Matemáticas, tudo tão claro para ela onde eu só vejo escuridão. Com que falo do João, em quem adivinho um realizador de cinema talentoso e de quem muito se poderá esperar num futuro que é já amanhã (um dia ainda vai ser merecedor de um SMS teu, quem sabe). No teu livro, porém, mais do que falar dos outros, é de ti que falas. Do teu passado, das brincadeiras, de como cresceste, quem esteve ao teu lado e quem não esteve. Quem foste, quem és. E também aqui as nossas memórias se misturam e confundem, dos bilhetinhos da Rosa Maria com uma cruz no quadradinho do “sim”, às tardes de loucura a jogar Monopólio ou ao “Pato com Laranja”, no sofá com os meus pais, eu a fingir que dormia. De diferente só mesmo o facto de seres benfiquista, eu que sou e serei sempre do Beira Mar.

Sabes, Miguel, surpreendeu-me a forma como vês o teu pai, o teu desapego quando falas dele. Quis saber mais, andei pela Wikipédia mas desisti logo, meio envergonhado. Saber o quê, se está tudo no que dizes sobre esse “homem que provou não existirem impossíveis”. O texto que escreveste depois de ele ter morrido é tão belo, que eu só me pergunto como é que podes ter escrito aquilo depois do que ele foi para ti. Mas logo se faz luz: Não serias nunca quem és se o pai fosse outro. Ou se não tivesse existido uma avó Joaquina ou uma tia Cristina, a quem dedicas, igualmente, textos de uma imensa saudade, simultaneamente alegres e tristes, de quem agradece à vida por cada momento vivido ao seu lado. A mãe, finalmente, a razão de ser desta longa carta, essa mulher que buscas com todas as tuas forças e que continuarás a buscar. A quem convocas para te convocares a ti próprio e te perguntares, também, que raio de gajo és tu. Podia dizer tanta coisa, mas vou ficar por aqui. Não tenho a veleidade de te pedir que me prometas que lês o que escrevi. Vendo bem, não sei ao certo o que escrevi ou porque o fiz. Sei que me saiu assim, de rajada, em permanente sobressalto, da mesma forma que li o teu livro, da primeira à última página. Pelo qual te agradeço. E te abraço com força.

Quim


terça-feira, 18 de agosto de 2020

LIVRO: "Quando Perdes Tudo Não Tens Pressa de Ir a Lado Nenhum"



LIVRO: “Quando Perdes Tudo Não Tens Pressa de Ir a Lado Nenhum”,
de Dulce Garcia
Ed. Guerra e Paz Editores, Fevereiro de 2017


“Se tu chegasses agora aqui, e eu me virasse e desse com a tua figura ainda familiar, o teu cabelo escuro despenteado, as pernas magras dentro de umas calças de ganga surradas, o meio sorriso entre os cinco anos e vários séculos de decepção, o que será que eu diria? Não faço ideia. Estou há meses há tua espera e nem ensaiei um discurso para o caso de voltares. Quererá isto dizer que já não te espero? Que na verdade nunca te esperei?”

“Eu sei que vou sofrer / A eterna desventura de viver / A espera de viver ao lado teu / Por toda a minha vida”. As palavras na voz de rebuçado de António Carlos Jobim são como pinceladas coloridas e breves que, em vão, tentam disfarçar os contornos desalinhados de dois corações partidos e colados com cuspe. Um belo filme, concordaríamos, à medida que o genérico final passa no ecrã e a música vai mergulhando no mais fundo de nós, as imagens fortes do drama em que se tornou a vida dos amantes bem presentes na memória. Só que não é de um filme que falo, antes de um livro. Um belo livro, direi então, agora que acabo de virar a derradeira página e de o cerrar sobre si mesmo. Daí o estar grato a Dulce Garcia pela verdade que se derrama da sua escrita e que tão bem soube transpor para este romance. Uma verdade que se assume a cada instante, nas lágrimas como no riso, na dor como no amor.

Numa longa confissão, “ela” e “ele” irão deixar-nos a sua história. Ela é Isabel. Ele é Afonso. Ambos são casados quando se conhecem, se apaixonam e decidem levar por diante a sua paixão. Não o planearam, um amor assim não se planeia, simplesmente acontece. Da mesma forma que não se planeia tudo o que vem a seguir, as partidas que o destino decide pregar aos dois, levando-os do céu ao inferno enquanto o diabo esfrega um olho. Tudo seria tão mais simples se as equações tivessem duas partes apenas. Um amor e uma cabana, que tal? Mas não. A vida que se quer vivida mansamente não é vida se não tiver a sua dose de reconhecida dor e sofrimento. Junte-se-lhe a chantagem, a mentira, a maledicência, a perfídia, a difamação, o embuste, a calúnia e um cem número de pulhices nas quais a natureza humana é fértil e, num ápice, o fogo arde e vê-se, a ferida dói e sente-se. O descontentamento e o desatino fazem parelha com a angústia e o desespero. Olhas para o lado e estás sozinho. E nesse momento dás-te conta de que não tens pressa de ir a lado nenhum.

A cada um dos amantes a sua verdade, apetece dizer, não havendo nisto nada de antagónico. Embora a estrutura narrativa do romance se baseie na comparação e complementaridade de histórias e de pontos de vista, Dulce Garcia não nos pede para confrontarmos os dois amantes com as suas eventuais falhas ou contradições, como se de uma acareação se tratasse. Tudo flui de forma natural, permitindo ao leitor identificar-se com as situações e criar cumplicidades. A beleza do livro está nessa força geradora de emoções que nos obriga a entrar nas suas páginas, ao encontro de pessoas que de repente passámos a conhecer e a compreender. Pessoas que não conseguem apagar a dor dando voltas ao quarteirão em noites de chuva, fumando cigarros atrás de cigarros ou bebendo duas garrafas de vinho até caírem para o lado. Pessoas que sofrem e que precisam do nosso abraço. E nós queremos estar lá para as abraçar.