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sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

LIVRO: "A Cinco Palmos dos Olhos" | Carlos Campaniço



LIVRO: “A Cinco Palmos dos Olhos”,
de Carlos Campaniço
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Casa das Letras, Outubro de 2025


“Era neles que pensava quando saiu de diante da casa do Falcão. Caminhava rasgando a claridade como um gume quando se cruzou com José Catarino, mesmo à porta da casa do autarca. Ia deixar-lhe carta debaixo da porta mas não precisou de o fazer, entregando-lha em mão. Não trocaram palavra. Também não eram dias para esconderem ressentimentos. Sabiam bem que os tempos vindouros os oporiam ainda mais no que concernia a devolução da propriedade da terra aos seus antigos donos. O carteiro prosseguiu, enquanto Catarino o olhou vagarosamente, vendo-lhe a magreza debaixo da farda espessa, apetecendo-lhe chamá-lo, gritar para que escutasse o que tinha para lhe dizer. A ele, um reaccionário do piorio. Mas um gole de tristeza levou-lhe as palavras de novo para o fundo da barriga. Deixou-o ir, mas àquele teria sido justo cantar-lhas bem cantadas.”

“A Cinco Palmos dos Olhos”, o mais recente romance de Carlos Campaniço, faz-nos regressar a um território que o autor bem conhece: O Alentejo profundo, olhado no rescaldo imediato da Revolução dos Cravos. Aldeia Velha, espaço ficcional mas reconhecível, funciona como microcosmos de um país em convulsão e onde a Reforma Agrária irrompe como força histórica e trauma colectivo. A ocupação das terras, a perda súbita de privilégios dos grandes proprietários e a lenta reorganização do trabalho agrícola abrem feridas profundas no tecido social da aldeia. Entre saudosistas e revolucionários, instala-se um clima de confronto latente, alimentado por discursos políticos inflamados ante o olhar de uma Guarda Republicana agora mais distante e permissiva. A chegada da chamada “Lei Barreto” arrefecerá os ânimos, mas não apagará ressentimentos nem desigualdades, apenas os acomodará num quotidiano tenso, onde a convivência se constrói mais por desgaste do que por reconciliação.

Mas se a política divide, é a vida miúda que verdadeiramente cose a aldeia. O romance encontra o seu nervo na espuma dos dias: no mexerico, no boato, na calúnia que circula de boca em boca com a rapidez de um incêndio em restolho seco. A galeria de personagens - quase caricaturais, mas nunca vazias - constrói um retrato coral onde todos vêem e são vistos. Do latifundiário arruinado ao trabalhador rural remediado, do padre ao autarca, da amante discreta à esposa traída, cada figura contribui para essa música de fundo que faz da aldeia a verdadeira protagonista do livro. Nesse emaranhado de vozes, destaca-se o carteiro Boca-Viúva, personagem sinistra e central, elo de ligação entre casas e segredos, portador de informações sussurradas que tanto revelam como distorcem a realidade. Curiosamente, é também no silêncio deste homem - no que escolhe calar - que o romance sugere a sua dimensão mais profunda, lembrando que nem toda a verdade circula à vista de todos.

Carlos Campaniço evita leituras maniqueístas e prefere mostrar a complexidade humana por trás das posições ideológicas, revelando como as grandes mudanças históricas se infiltram, de forma imperfeita, nas vidas pequenas e concretas. Com uma escrita leve, fluida e de grande eficácia narrativa, o autor confirma em “A Cinco Palmos dos Olhos” a maturidade já evidenciada em “As Viúvas de Dom Rufia” e “Velhos Lobos”. A prosa é quase táctil, colando o leitor às paisagens, aos corpos cansados, às emoções contraditórias de um tempo em transformação. Sem ceder ao didatismo, o autor levanta questões duras: a exploração histórica dos trabalhadores rurais, as sequelas da Guerra Colonial, a violência doméstica, os abusos sexuais, as pequenas e grandes crueldades quotidianas. Tudo isto integrado num retrato social rigoroso, contraditório e profundamente humano. A força do romance reside precisamente nessa capacidade de envolver o leitor, de o fazer tomar partido, de o conduzir sem esforço por uma narrativa que se lê de um fôlego. No final, fica-nos a sensação de que, mais do que uma história sobre uma aldeia e as suas gentes, se leu um capítulo essencial da memória colectiva portuguesa.

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