Não podia ter sido mais feliz o convite a Benilde Teixeira para assinalar vinte e cinco sessões de Tertúlias Literárias “Conversas às 5”. Promovida pelo Centro de Reabilitação do Norte, a iniciativa permitiu revelar uma personalidade com uma força interior inabalável e uma alegria de viver contagiante, capaz de vencer até as provações mais duras e cuja história de vida serviu de exemplo e inspiração para todos os presentes. Desde muito cedo, Benilde Teixeira foi chamada a enfrentar responsabilidades que muitas crianças desconhecem: ainda mal tinha idade para brincar e já ajudava os pais nos trabalhos agrícolas e nas lides domésticas. Os estudos ficaram pelo caminho, como aconteceu com tantas crianças da sua geração, mas nunca lhe faltou a vontade de aprender nem a coragem de lutar por uma vida melhor. Aos quinze anos, deixou o lar familiar e partiu para o Porto e, mais tarde, para Lisboa, para trabalhar como empregada doméstica. Anos depois, a vida trocou-lhe novamente as voltas, e da forma mais dura possível: uma infeção generalizada levou à amputação de parte dos seus quatro membros. Mas nada disso a derrubou.
Jovial, calça e casaco vermelho, um enorme sorriso estampado no rosto e a resposta na ponta da língua, Benilde Teixeira foi capaz de, ao longo de quase uma hora e meia, falar da sua infância e juventude, do trabalho longe da família, da doença e dos processos de recuperação e superação, de como enfrenta actualmente o dia-a-dia e da questão que faz em lutar permanentemente por si e pelos outros. Moderada por Joaquim Margarido, a conversa teve no livro “Eu Cantava Para os Pássaros” um autêntico guião, revelando a faceta de escritora da convidada. A leitura de alguns textos do livro permitiu abordar separadamente episódios de vida marcantes, a começar por uma infância que Benilde Teixeira classificou como “feliz”, no seio de uma família alargada: “Éramos oito irmãos e todos tinham as suas actividades. Eu tomava conta dos irmãos mais novos, ía buscar água à fonte, acartar lenha para o comer ou levar as vacas e as ovelhas para o monte. Andava sempre por aí”, lembra. E também cantava para os pássaros, com a perfeita noção de qual era “o mês do cuco ou da rola”. Recorda, nessa altura, que o seu maior sonho era “estudar e ter um curso”, mas os pais não a autorizaram a prosseguir os estudos, apesar das excelentes notas e da insistência da professora que assumiria todos os encargos com a sua educação.
Aos quinze anos uma viragem na sua vida levou-a a casa de uma família do Porto, para cuidar de crianças - “os meninos só comiam comigo, eu cantava-lhes, eles começavam a rir-se com a boca aberta e eu aproveitava para enfiar logo uma colherada de papa” - e, mais tarde, para Lisboa, onde se encontrava o irmão a cumprir o serviço militar. Das dificuldades desse tempo e de um regime onde “não se podia falar com estranhos ou apanhar um papel do chão”, contou Benilde Teixeira alguns episódios, nomeadamente o seu destemor no dia 25 de Abril de 1974 quando, à revelia das instruções dos patrões, ousou sair de casa para comprar o necessário para as refeições da família. Mas foi a doença que monopolizou a conversa, a infeção generalizada e os dias em coma, a iminência de ser desligada do ventilador depois da família se ter vindo despedir dela: “Desligar as máquinas? Alto lá que eu ainda não quero ir. Abri os olhos e eram duas menos dez da manhã.” A notícia da necessidade de amputação dos quatro membros foi um choque tremendo, que se estendeu à própria equipa de saúde. A sua reacção, porém, foi surpreendente. Virou-se para os médicos e disse-lhes: “Eu não era para viver, portanto façam o que é preciso. Tirem tudo, mas deixem-me do pescoço para cima para eu poder ver a minha filha.”
Não era para viver, mas sobreviveu à amputação e a uma nova infeção devastadora que também logrou ultrapassar. Tocar à campainha, tomar a medicação, enviar uma mensagem no telemóvel, comer por mão própria, o primeiro duche, o primeiro café (prescrito em diário clínico “até às três da tarde”) ou uma inesquecível francesinha, são momentos que Benilde Teixeira partilha com emoção, cada um deles a calar bem fundo no coração dos presentes. “Temos de lutar, não somos coitadinhos”, avisa, ao mesmo tempo que vai desfiando estratégias e lembrando a condição de tetra-amputada e as dores fantasma sempre presentes. A fisiatra Sofia Ataíde conheceu Benilde Teixeira no Serviço de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital de Santo António e partilha uma particular vivência no dia da chegada da doente ao Serviço, vinda dos Intensivos, muito instável, com as tensões muito baixas e sinais de uma nova infeção. “Fui a correr aos Intensivos e tentei falar com o médico que me disse estar muito ocupado, mas quando referi o nome da Dona Benilde ele fez o impensável: Atravessou o hospital de uma ponta à outra, prescreveu imensa medicação à doente e aí soube o quão especial a Dona Benilde era para todos.”
Renato Nunes, o fisiatra que recebeu Benilde Teixeira no Centro de Reabilitação do Norte quatro meses depois das amputações, também partilhou com os presentes algumas memórias de um processo complexo e desafiante. “Quando recebemos a referenciação da Dona Benilde para internamento no CRN, estávamos à espera de encontrar uma doente com muitas alterações a todos os níveis. Foi surpreendente acolhê-la, porque afinal encontrámos uma doente bem disposta e capaz de fazer uma variedade enorme de coisas, apesar dos condicionalismo físicos”, recorda. A propósito de um internamento que se estendeu por cerca de nove meses, Renato Nunes recorda um processo evolutivo constante, de grande adaptação às estratégias prescritas, mas também “o fim de semana em que a Dona Benilde, com a sua cadeira eléctrica, conduziu um comboio de doentes em cadeira de rodas pelos corredores do CRN”, assim como “as mudanças de quarto para, com a sua atitude, nos ajudar a lidar com doentes mais fragilizados”. Uma memória que mereceu de Benilde Teixeira um curioso comentário: “Quando puseram uma doente no meu quarto e, na visita médica, lhe perguntaram se estava melhor, ela disse que estava 50% melhor: Mas é à Dona Benilde que eu devo os 50% por cento, não é aos médicos.”
Como as cerejas, as histórias continuaram a fluir, trazendo consigo o exemplo de uma personalidade ímpar, inspiradora, motivadora, com a qual todos temos muito a aprender. Às mensagens de incentivo, juntam-se também as de gratidão: “Agradeço aos médicos, aos enfermeiros, a todos os profissionais de saúde, mas sobretudo a Deus e aos anjos que estiveram sempre ao meu lado”, disse. Hoje continua a ser a mesma mulher determinada, mantendo no rosto um belo sorriso e na sua maneira de estar uma capacidade de resiliência que comove e inspira. Tal como fazia em criança, continua a “cantar para os pássaros” e a enfrentar cada dia com uma coragem que é exemplo para todos nós. “Revi-me em muitas coisas que ela disse”, partilhava um doente no final da tertúlia, visivelmente emocionado com este momento de aprendizagem sobre o que verdadeiramente importa na vida. Outro dos presentes lembrava um projecto de voluntariado que teima em assumir e que o testemunho de Benilde Teixeira terá ajudado a desbloquear. Tertúlias assim são preciosas e só temos de estar gratos a quem, de forma simples e perfeitamente benévola, se mostra capaz de as proporcionar. Obrigado Dona Benilde.
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