LIVRO: “A Voz das Mulheres”,
de Miriam Toews
Texto original | “Women Talking”, © 2018 Miriam Toews
Tradução | Ana Maria Pereirinha
Ed. Alfaguara, Setembro de 2023
“Ona informou-me que Salome Friesen, uma temível iconoclasta, tinha assinalado na reunião de ontem que ‘Não Fazer Nada’ não era, na realidade, uma opção, mas que permitir que as mulheres votassem em ‘Não Fazer Nada’ lhes daria, pelo menos, algum poder de decisão. Mejal (que significa ‘menina’ em plautdietsch) Loewen, uma simpática fumadora compulsiva que tem duas pontas de dedos amarelas e aquilo que eu suspeito deva ser uma vida secreta, concordara. Mas, contou-me Ona, Mejal também fez notar que ninguém tinha concedido a Salome Friesen a autoridade para poder declarar o que constitui a realidade ou quais são as opções. Ao que parece, as restantes mulheres Loewen haviam concordado com isto com um gesto de cabeça, enquanto as mulheres Friesen expressaram impaciência com gestos rápidos e desdenhosos. Este tipo de conflito menor ilustra bem o timbre do debate entre os dois grupos, as Friesens e as Loewens.”
“A Voz das Mulheres” é um romance baseado em factos verídicos ocorridos numa comunidade menonita boliviana. Entre 2005 e 2009, várias mulheres foram sedadas com um fármaco à base de beladona e brutalmente violadas por homens da própria colónia. Numa comunidade onde o silêncio é a lei, foram reportados cento e trinta casos, a mais nova das abusadas uma criança de três anos. Inicialmente desacreditadas, as vítimas foram acusadas de mentir ou de ter sido atacadas por demónios, até que a verdade acabou por se afirmar. Na narrativa ficcional, a história começa quando os agressores estão prestes a regressar à colónia após serem presentes a um juiz e saírem sob fiança. Nessa altura, oito mulheres reúnem-se secretamente num celeiro para decidir o que fazer: permanecer em silêncio, enfrentar os seus opressores ou abandonar a comunidade. Sem acesso à educação, submissas ao poder religioso e patriarcal, essas mulheres ousam imaginar um futuro diferente, onde possam pensar livremente, educar as suas filhas e viver sem medo. Registadas por August Epp, um professor simpático à sua causa, as suas vozes expressam uma profunda crítica à opressão sistémica e à perversão da fé usada como instrumento de dominação.
Como permanecer fiel ao que diz a Bíblia? Compreendem realmente as mulheres o que ali está escrito? Aprenderão a ler e a escrever para o descobrir por si mesmas? Como continuar a acreditar, a respeitar a sua fé? Como proteger os seus filhos? Reivindicarão um lugar igual ao dos homens? Serão capazes de o fazer? Terão, enfim, vontade de tentar? E o que dizer dos homens ausentes, ou das crianças? Estas perguntas, levantadas com urgência e intensidade, estruturam um debate coletivo entre oito mulheres, mas que acaba por se dirigir ao leitor e por o envolver. A obra questiona se tais dilemas podem ser resolvidos através da permanência e da resistência ou, inversamente, pela saída definitiva — um gesto de ruptura e afirmação de autonomia, em que a decisão passa a ser pessoal e não mais uma concessão masculina. Cada palavra e cada silêncio ganham, assim, um peso político e simbólico profundos. Num mundo dominado por sociedades patricarcais, o livro mostra que é possível construir um novo modelo de vida, simultaneamente físico e espiritual, onde a coexistência digna entre homens e mulheres se baseie no respeito e na cumplicidade, longe das violências normalizadas que a moldaram.
Em “A Voz das Mulheres”, Miriam Toews oferece-nos uma narrativa profundamente comovente e de enorme força ética, afirmando a necessidade de solidariedade e autonomia feminina para romper o ciclo de violência e submissão. A escolha de uma escrita depurada, quase documental, reforça a autenticidade e a urgência dos diálogos. A voz narrativa pertence a August Epp, um homem marginalizado dentro da comunidade, cuja função de escriba não lhe concede autoridade, apenas escuta. Esta opção narrativa é significativa, permitindo que as mulheres falem com liberdade e se abra um espaço onde o registo oral, espontâneo e emotivo, possa assumir-se como um documento colectivo de resistência. A autora trabalha com grande mestria a oralidade e a tensão entre fé, tradição e emancipação. A estrutura do romance — centrada em reuniões clandestinas — revela não só a progressiva tomada de consciência das personagens, mas também o nascimento de uma linguagem própria, capaz de pensar o trauma e propor alternativas. Cada mulher, à sua maneira, redescobre o poder de pensar, de questionar, de agir. “A Voz das Mulheres” não é apenas um romance sobre a violência. É, sobretudo, uma meditação sobre a liberdade, a responsabilidade e a construção de um novo pacto comunitário, feito desta vez por mulheres e para mulheres.
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