“Sinto que hoje no escritório posso adotar esse tipo de personalidade. A personalidade de tubarão, de vencedora, o tipo de personalidade das mulheres que transformam o trabalho numa espécie de virtude sagrada como outrora foi a maternidade e publicam fotos no escritório com o hashtag#GirlBoss. Converter-me-ei a isso que o capitalismo entende por feminismo durante as próximas oito horas. Esse mostrengo de mulher total que aguenta tudo. As das rotinas da cinco às nove e depois das nove às cinco, Um espécie de ciborgue com todas as qualidades e características positivas associadas às mulheres, mas sem toda a parte má que também nos atribuem.”
“O Desencanto”, de Beatriz Serrano, inscreve-se com precisão cirúrgica na tradição do romance social contemporâneo, o olhar dirigido ao mal-estar quotidiano sem recorrer a gestos épicos. Através de Marisa, uma publicitária na casa dos trinta anos presa a uma agência madrilena, Serrano constrói um retrato ácido do trabalho enquanto sistema de sobrevivência emocional, mais do que espaço de realização pessoal. O escritório surge como cenário onde a produtividade se confunde com sentido de vida e onde a linguagem corporativa - “briefings”, “calls”, “team buildings” - funciona como verniz moderno que disfarça o vazio. Marisa não odeia apenas o emprego: rejeita a impostura constante, a obrigação de ser simpática, feminista funcional e líder inspiradora durante oito horas por dia. A sua rotina, sustentada por ansiolíticos, vídeos do YouTube e muito sarcasmo, revela uma alienação que não é individual, antes geracional. Serrano não aponta o dedo ao trabalho em abstracto, mas a uma cultura que transforma a precariedade em privilégio e a resistência emocional em mérito profissional.
O romance distingue-se por uma voz narrativa que cruza humor negro, observação minuciosa e uma ironia que não resvala nunca para o cinismo. Escrita na primeira pessoa, a prosa avança num ritmo cumulativo, alternando cenas da vida laboral com reflexões íntimas que retratam a solidão, as relações utilitárias e a anestesia emocional como mecanismos de defesa. A estrutura em espiral reforça a sensação de clausura e desgaste progressivo, enquanto referências culturais reconhecíveis ancoram o relato numa contemporaneidade saturada de estímulos e vazia de certezas. O feminismo corporativo, a estética do sucesso, a pressão familiar e o medo de desaparecer do sistema atravessam o texto sem sublinhados excessivos. Entre e-mails inúteis e sorrisos obrigatórios,
a autora vem dizer-nos que a tragédia moderna se administra em pequenas doses diárias, em vez de explodir de uma só vez e e arrasar tudo em redor.
Mais do que oferecer respostas, “O Desencanto” coloca uma pergunta incómoda: o que acontece quando “funcionar” já não significa estar bem? O romance dialoga directamente com uma geração altamente qualificada, exausta e consciente da fraude simbólica que sustenta o actual contrato social. O final, deliberadamente não conciliador, reforça a honestidade do conjunto: não há redenção fácil nem fuga clara, apenas a constatação de um mal-estar partilhado. É nesse gesto que reside a sua força política e literária. Beatriz Serrano consegue transformar a banalidade do quotidiano numa crítica lúcida do presente, lembrando que reconhecer o cansaço, nomeá-lo ou até rir-se dele pode ser o primeiro acto de resistência face a um sistema que exige entusiasmo permanente em troca de pouco mais do que um open space com ar condicionado, uma pequena copa e frases motivacionais afixadas na casa de banho.
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