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terça-feira, 13 de maio de 2025

TEATRO: "Crocodile Club"



TEATRO: “Crocodile Club”
Texto e encenação | Mickaël de Oliveira
Desenho de vídeo e cinematografia | Fábio Coelho
Cenografia e figurinos | Pedro Azevedo
Interpretação | Afonso Santos, Bárbara Branco, Beatriz Wellenkamp Carretas, Fábio Coelho, Gabriela Cavaz, Luís Araújo, Inês Castel-Branco
Produção | Teatro Oficina, Colectivo 84
135 Minutos | Maiores de 16 Anos
Teatro Nacional São João
10 Mai 2025 | sab | 19:00


“Crocodile Club” inscreve-se numa tradição de teatro fantasmagórico, com raízes nos grandes espetáculos e saraus que, a partir de meados do Século XIX, mesclavam ciência, paraciência e espiritismo em vários pontos da Europa. Depois de “Hantologia” (2019, Teatro Académico Gil Vicente) e “Festa de 15 Anos” (2020, Teatro Nacional São João) – dois trabalhos que, de formas distintas, ensaiavam a ideia de espectro como presença e dispositivo dramatúrgico –, Mickaël de Oliveirainiciou em 2022 uma investigação sobre as práticas mediúnicas nas artes performativas, em busca de pontos de tensão entre o artístico e o espectral na sua performatividade – uma vizinhança que, durante décadas, marcou as programações teatrais, quando o palco se abria a corpos atravessados por vozes, presenças e mensagens oriundas de outro lugar. A investigação tomou forma no objecto digital “Ecos_3” (disponível no site do Colectivo 84), cocriado com Lígia Soares e João Garcia Neto. Talvez pela descontinuidade da tradição dos espetáculos de fantasmagoria, é hoje mais fácil vincular “Crocodile Club” à linhagem do cinema de terror – uma tradição que, aliás, também reivindica, nomeadamente pela utilização de um forte dispositivo audiovisual, como fonte de ficção e moldura para a sua receção.

O teatro fantasmagórico e o cinema de terror são territórios privilegiados da metáfora e da alegoria – da mais subtil à mais grosseira –, e “Crocodile Club” propõe a evocação de um fantasma que, como certas doutrinas, se transfere de corpo em corpo, esgotando-os numa cadeia de possessão ininterrupta para garantir a sua propagação e adiar o seu colapso. No espetáculo, esse espírito – de matriz nacional-socialista – não se instala pela força, mas pela empatia: encarna em corpos afáveis, comunicantes, saudáveis. Os espíritos, como as ideologias, são sempre sedutores nas primeiras fases da possessão. Mas “Crocodile Club” é também sobre o reverso do espírito – o corpo. Um corpo sistematicamente convocado ao longo da peça, ora como lugar de desejo, ora como ameaça. Esses corpos – desejados, sacrificados, profanados – evocam uma iconografia cristã marcada pelo sangue do seu messias e dos seus mártires. Além disso, se os anjos não costumam ter género, escolheu-se o masculino para caracterizar o fantasma parasitário do corpo de Clara – jovem e fértil –, que se torna involuntariamente espaço de inscrição desse outro, desse estranho, que fala por ela. Não é apenas uma figura de possessão ideológica: é também uma imagem da representação do feminino como território de conquista.

“Crocodile Club” não esconde a iconografia do martírio contemporâneo do corpo feminino – sujeito ainda ao controlo, violação, reeducação ou morte, num país onde a taxa de feminicídios continua entre as mais altas da Europa. É também nesse contexto cultural que o corpo de Beatriz, candidata populista, é esquartejado: não como punição, mas como solução prática e apressada para um problema maior – a sua dissimulação para evitar o aparecimento de um novo mausoléu ideológico. O esquartejamento torna-se então alegoria daquilo que o espetáculo observa com inquietação: a tendência para esconder o problema, apagá-lo ou dispersá-lo. “Crocodile Club” assume por isso um outro espírito, maior – o do nosso tempo inquietante, marcado por catástrofes anunciadas e por uma crescente complacência em relação à extrema-direita. A complacência é cultural, mediática, institucional e historicamente cíclica. Evoca, como decalque, o caminho permissivo que levou Hitler a Führer, a Alemanha a declarar-se um Terceiro Reich e ao extermínio imparável de minorias. Mas a extrema-direita de hoje apresenta-se com novos rostos, outros símbolos, mestre de uma arte aperfeiçoada do disfarce. Na aparência, o inimigo também mudou. A distorção é política – e, por isso mesmo, semântica. Não é por acaso que o corpo de Clara é o palco de ambas.

Quando Marine Le Pen, condenada por desvio de fundos europeus, invoca Martin Luther King Jr. como símbolo de resistência; quando Elon Musk acena com uma saudação nazi a uma multidão trumpista e nega o gesto; quando Trump mente sistematicamente e acusa a imprensa de desinformação – já não assistimos a contradições, mas a um novo léxico do poder. A negação tornou-se argumento. A mentira, estratégia. O insulto, performance. Em 2016, Trump afirmou que poderia matar alguém na 5.ª Avenida sem perder votos – e venceu. A quem é atribuída a célebre frase “Não existe má publicidade, apenas publicidade”? A Phineas Taylor Barnum (1810-91), empresário norte-americano de espetáculos de aberrações e fantasmagorias, e um dos fundadores do circo moderno. Há no nosso tempo acessos directos (verdadeiros portais) para um mundo coberto de trevas por onde se observa a morte a circular novamente, através da superstição e ignorância organizada; guerras, epidemias, catástrofes ambientais, desprezo pela diferença, adesão a mitos antigos reciclados como verdade; onde poetas, bruxas e cientistas são silenciados – não em fogueiras, talvez, mas em campanhas de descredibilização, em decretos expeditivos e punitivos.


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