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terça-feira, 17 de setembro de 2024

CINEMA: "A Pedra Sonha Dar Flor"



CINEMA: “A Pedra Sonha Dar Flor”
Realização | Rodrigo Areias
Argumento | Eduardo Brito, Pedro Bastos, Rodrigo Areias
Fotografia | Jorge Quintela
Montagem | Tomás Baltazar
Interpretação | Nuno Preto, João Pedro Vaz, Miguel Moreira, Gustavo Sumpta, Paula Só, Ângela Marques, Valdemar Santos, Bárbara Pais, António Durães, Júlia Valente, Diana Sá, Alheli Guerrero, Zeca Medeiros, Jorge Mota, Emília Silvestre, Adelaide Teixeira
Produção | Rodrigo Areias
Portugal | 2024 | Drama | 101 Minutos | Maiores 14 anos
Shortcutz Ovar #86 - Noite Longa
Centro de Artes de Ovar
14 Set 2024 | sab | 21:30


O Shortcutz Ovar regressou de férias e trouxe com ele, não uma curta, mas uma carta. Uma carta na manga, um ás de trunfo na forma de “noite longa” que, para além de assinalar a estreia do novo e precioso equipamento de projecção do Centro de Artes de Ovar, deu a ver, perante uma sala praticamente esgotada, “A Pedra Sonha Dar Flor”, novo filme de Rodrigo Areias a fazer por estes dias a sua entrada no circuito comercial em Portugal. Delicado e sensível, o filme revela-se especialmente valioso para todos quantos vivem e sentem como seu este território único que é a Ria de Aveiro, emaranhado de águas onde canais e campos agrícolas se conformam ao ritmo constante das marés. Nele, a paisagem assume o papel de personagem principal, indo beber às palavras de Raúl Brandão a sua inspiração, vitalidade e enorme brilho. Um filme com uma carga literária fortíssima que, não por acaso, serviu de complemento à sessão de apresentação do Festival Literário de Ovar, a cumprir este ano a sua 10ª edição. Literatura e cinema em comunhão íntima, com a vasta laguna em pano de fundo, nesse olhar profundo e imensamente poético do autor de “Húmus”, “Os Pescadores” e “A Morte do Palhaço” sobre os mistérios da vida e as intermitências da morte.

Na conversa promovida por Tiago Alves no final da sessão, Rodrigo Areias surpreendeu o público ao sustentar que o seu primeiro interesse é a Literatura. De seguida vem a Música e só então o Cinema. Nesta que é a segunda incursão do realizador no universo de Raúl Brandão - depois do documentário “Hálito Azul” -, a afirmação parece ganhar sentido, tamanha a intensidade com que as palavras provocam o espectador e o arrastam na torrente de lama e de lodo que mergulha nas profundezas do grande lago, enquanto à superfície tudo é calmaria. A aldeia é pouco mais do que um ponto na amálgama imensa de canais que furam a terra como se de dedos se tratasse. Uma aldeia com a sua pequena igreja e o seu cemitério, as suas vielas lúgubres e o seu conjunto de casas húmidas e tristes, o seu cais, ponto de partida e de chegada de gente vazia de sonhos e emoções. Mas nem tudo o que parece é: À porta das fábricas distribuem-se panfletos clandestinos que denunciam a miséria e apelam à revolta, a indignação rompe da garganta dos hereges, as beatas duvidam das graças eternas, a equilibrista procura aguentar-se no balanço, um diabo em forma de gente solta no ar a sua gargalhada maquiavélica e a gloriosa fornicação toma o lugar de extrema unção. O palhaço, tal como o doido, estão condenados a morrer.

Raúl Brandão “escrevia como o pintor que gostava de ser”. Na sua relação íntima com a obra do escritor, “A Pedra Sonha Dar Flor” adopta o mesmo tom. Há um enorme rigor na planificação - ainda que condicionada pelas acessibilidades aos locais de filmagem que terão obrigado a descartar alguns dos mais belos locais da nossa Ria -, que nos é devolvido sob a forma de imagens muito belas da autoria de Jorge Quintela. Sombrias e luminosas ao mesmo tempo, nelas se exprime o espanto, a emoção e o sentimento que preside à escrita de Raúl Brandão, reflexo desse diálogo íntimo que foi mantendo consigo mesmo. A busca do desconhecido que se derrama da sua escrita percorre toda a narrativa, confrontando o espectador com a sua própria identidade e lembrando-lhe o quanto de tristeza se esconde num sorriso, o quanto de mentira se abriga numa jura. Há, enfim, a música, interpretada nesta sessão ao vivo pelo compositor Dada Garbeck, oferecendo uma paleta sonora onde se misturam os delicados murmurios de uma paisagem moldada no quotidiano confronto entre homem e natureza e a polifonia dos cânticos, no vincar de uma religiosidade que se pressente em cada olhar, em cada gesto. “A Pedra Sonha Dar Flor” é um filme de extremos, um filme de “ame-o ou deixo-o”. Eu amei.

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