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sábado, 27 de abril de 2024

TEATRO: "A Paz é a Paz"



TEATRO: “A Paz é a Paz”
Criação | UmColetivo
Dramaturgia | Ricardo Boléo, a partir de “A Paz”, de Aristófanes, da obra jornalística e poética de Maria João Carvalho, de “Nea Kavala, Nea Kavala”, de Frederico Martinho e de entrevistas a refugiadas, madrinhas e enfermeiras de Guerra
Cenografia | Bruno Caracol
Figurinos e adereços | Raquel Pedro
Composição musical e sonora | João Maria Carvalho, João P. Nunes, Sofia Pinto
Interpretação | Cátia Terrinca, Mariana Ramos Correia, João Maria Carvalho, Vasco Pereira, Afonso Teixeira Miguel, Teresa Corte-Real, André B. Silva, Ousmane Thiocone, André Nunes da Silva, Maria Falca, André Silvestre, Maria Ceia, Diego Almeida, Inês Gomes, Diego Almeida, Gonçalo Nunes
Produção | UmColetivo
60 Minutos | Maiores de 12 anos
Centro de Artes e Espectáculos de Portalegre
25 Abr 2024 | qui | 21:30


“O que fazer com esta gente, perguntam os televisores aos televisivos. O que fazer com as frases que ensinaram aos filhos e depois esconderam debaixo do sal para que pudessem ser consumidas mais tarde, quando o problema for menos que uma fractura? Menos que uma coragem que não desponta. As reportagens alertam para um drama, os comentadores para uma ponderação. Quem são estes corpos, cujos temores de violação de um falso equilíbrio os atiram para os aglomerados nas ilhas? Quem são estes corpos que se lançam ao mar como piratas sem a caveira hasteada, ousando um recorte no mapa?”
Frederico Martinho, in “Nea Kavala, Nea Kavala” (2022)

“Desde que chegámos a este mundo, temos vivido como refugiados. Na espera, perdemos a conta dos dias que transportam a náusea para a insónia das noites. Não temos nada, não possuímos nada. Apenas o desejo de querermos viver. De vivermos em liberdade, em harmonia com aqueles que foram os nossos capatazes.” Tinha o olhar cravado em mim e dizia estas palavras como quem se agarra às tábuas de um barco naufragado nas costas de Lesbos ou de Lampedusa. Pausada, mas firme, a sua voz era isenta de raiva, isenta de dor. Talvez incompreensão, talvez resignação, talvez apenas o querer viver em liberdade, em paz, em harmonia, o “querer o impossível”. “Meu peito feito campo de batalha”, eu baixava os olhos e eram as palavras de Ana Luísa Amaral que me apareciam, iniciais, inteiras, limpas: “Em vez de peixes, Senhor, / dai-nos a paz, / um mar que seja de ondas inocentes, / e, chegados à areia, / gente que veja com o coração de ver, / vozes que nos aceitem”. Na mulher que assim me olhava e assim falava, via-lhe os fios que se desprendiam das vestes, fios vermelhos de sangue. Quis dar-lhe a mão. Quis tanto dar-lhe a mão e dizer-lhe que, também eu, sou refugiado.

A peça vai começar. Seguimos por um corredor até encontrarmos uma porta onde se pode ler “palco”. Entramos. Sob uma luz ténue, duas fileiras de bancos corridos alongam-se na diagonal. É neles que nos sentamos, frente a frente. Na penumbra percebemos que são vários os corpos deitados no chão. Dois deles erguem-se lentamente. Dirigem-se para as margens do palco e pegam em andaimes que vão montando, à frente e atrás do público, com a determinação de quem não tem tempo a perder. O campo aberto do palco transforma-se, a pouco e pouco, no espaço concentracionário de uma trincheira na qual o público se refugia, inquieto e tenso. Com os seus instrumentos de música, os actores vão-se dispondo no cimo dos andaimes, como anjos a sobrevoar as nossas cabeças. Os sons dissonantes trazem-nos o barulho das bombas que caem do outro lado da cidade, um avião de guerra que estala nos céus, ruídos secos que podem ser de balas, gritos abafados. Estamos ali e estamos em Cabul ou em Damasco, em Kharkiv ou em Rafah. Somos talvez trinta, talvez quarenta espectadores, e aquele é o nosso abrigo. Estamos entregues a nós e não falamos, aguardamos apenas. Ansiosamente. A Guerra é a Guerra.

“A Paz é a Paz” é um extraordinário exercício de teatro. Duro, intenso, imersivo, exige do espectador na medida exacta daquilo que dá. E o que dá é muito. A montagem inicial do dispositivo cénico chega a ser desconcertante. “ - Porque é que os andaimes não estão já montados?”, interroguei-me eu uma mão cheia de vezes, a ver o tempo passar sem que outra coisa acontecesse senão esse labor das duas mulheres a montar andaimes. E, de súbito, estou numa trincheira em Erbil, num abrigo em Gaza, nas profundezas de uma estação de metro em Kiev, e não sei o que pensar, o que dizer. Sinto e sofro com os murros no estômago que não param de se suceder. “Na Guerra é sim ou não; situações de mais ou menos não existem”! “Em guerra, alcançar a meta é chegar vivo”! “Não há cães nas ruas porque comem-se os cães”! “Cuidado, cuidado, cuidado, cuidado”! É preciso dizer ainda que o trabalho de Mariana Ramos Correia e Cátia Terrinca na condução do espectáculo é de um nível superior. Ambas são comoventes de sinceridade, de coragem, de humanidade, na forma como tocam, como olham, como desenham a poesia que poisa e alastra, que harmoniza, pacifica, liberta. A Paz é a Paz.

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