CINEMA: “O Corno do Centeio” / “O Corno”
Realização | Jaione Camborda
Argumento | Jaione Camborda
Fotografia | Rui Poças
Montagem | Cristóbal Fernández
Interpretação | Janet Novás, Siobhan Fernandes, Carla Rivas, Daniela Hernán Marchán, María Lado, Julia Gómez, José Navarro, Nuria Lestegás, Darío Fernández Raposo, Valentín Estévez, Filomena Gigante, Pamela Vidal, Belén Merino, Diego Anido, Álvaro Cardalda
Produção | Jaione Camborda, Andrea Vásquez, María Zamora
Espanha, Portugal, Bélgica | 2023 | Drama | 105 Minutos | Maiores de 12 anos
Cine-Teatro Eduardo Brazão
03 Abr 2024 | qua | 15:30
Depois de “As Bestas”, de Rodrigo Sorogoyen, volto a cruzar-me com o chamado Novo Cinema Galego e com os particulares elementos culturais desta região do Noroeste Peninsular, desde logo o uso da própria língua, mas também a experiência da diáspora ou a memória e a paisagem como factores de criação de uma identidade individual e colectiva. É isso que nos dá a ver Jaione Camborda, cineasta do País Basco radicada há anos na Galiza, que partilha com os seus colegas galegos a mesma visão telúrica, o mesmo fervor visceral no apego às gentes e aos lugares. Situado na Ilha de Arousa, no início dos anos 70, o filme abre com uma cena de acção intensa e comovente, onde uma mulher ajuda outra a dar à luz. É um momento-chave do filme, não apenas pela forma como a realizadora faz uso do tempo - o que acaba por ser uma das suas características mais impressivas -, mas também pelo seu significado. A partir deste momento saberemos que a maternidade não é um mar de rosas para muitas mulheres, o drama a tomar conta da história e a trazê-la para o campo da coragem, do paciência, da sobrevivência.
Depois de um documentário e de uma longa-metragem de ficção, Jaione Camborda traz-nos a história de Maria, a “parteira do povo” numa altura em que as crianças nasciam em casa, sobretudo nas zonas mais rurais. Aos poucos vamos conhecendo melhor esta mulher, o drama de não ter filhos apesar de querer muito tê-los, a sua fuga para o outro lado da fronteira com Portugal depois de ter ajudado uma jovem a abortar e as coisas terem corrido muito mal, a distância e a saudade de quem vive em terra estranha. A história desta parteira, também abortadeira, é narrada por Jaione Camborda com toda a serenidade, o tom pessoal da realizadora a revelar uma enorme maturidade sobre as questões mais íntimas do universo feminino, as dúvidas que se erguem durante a gravidez, a dor tremenda do parto, a censura e a repulsa que recai sobre a mulher que aborta e quem ajuda a abortar, a precariedade da fuga, a solidariedade entre pessoas comuns e que sabem o que é sofrer porque o terão sentido na própria pele.
Feito de olhares fugidios, de vozes apenas sussurradas, o filme entrega à paisagem o papel de personagem silenciosa que parece abraçar e fazer suas as figuras humanas que vagueiam pelos campos da Galiza. É como se a própria paisagem inspirasse histórias que, contadas por gente de fora da terra, como é o caso, se mostrassem impregnadas de uma saudade, de um ritmo especial, de tons realistas mas também iridescentes, uma espécie de sonho acordado. Telúrico no sentido do seu apego à terra, o filme remete para um tempo de obscurantismo e ditadura, a repressão franquista a ditar a sua lei sobre a moral e os bons costumes, a retirar à mulher qualquer poder de decisão. Um tempo em que tudo era trabalho braçal, a tecnologia resumida a um aparelho de rádio a debitar “fados negros”. Com uma componente documental forte, “O Corno do Centeio” conta com uma interpretação notável de Janet Novás, no papel de Maria, senhora de uma intuição desarmante e de uma naturalidade surpreendente. Um belo filme de uma realizadora cujo nome importa reter.
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