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quarta-feira, 1 de novembro de 2023

CINEMA: "Assassinos da Lua das Flores"



CINEMA: “Assassinos da Lua das Flores” / “Killers of the Flower Moon”
Realização | Martin Scorsese
Argumento | Eric Roth, Martin Scorsese
Fotografia | Rodrigo Prieto
Montagem | Thelma Schoonmaker
Interpretação | Leonardo DiCaprio, Robert De Niro, Lily Gladstone, Jesse Plemons, Tanto Cardinal, John Lithgow, Brendan Fraser, Cara Jade Myers, Janae Collins, Jillian Dion, Jason Isabel, William Belleau, Louis Cancelmi, Scott Shepherd
Produção | Dan Friedkin, Daniel Lupi, Martin Scorsese, Bradley Thomas
Estados Unidos | 2023 | Crime, Drama, História | 206 minutos | Maiores de 14 anos
Vida Ovar
31 Out 2023 | ter | 21:05


Fairfax, Oklahoma. Em pleno território Osage, pequeno pedaço de terra concedido pelo Governo Federal à tribo nativa com o mesmo nome, há uma revolução a acontecer. A descoberta de vastas jazidas de petróleo sob os poucos quilómetros quadrados daquela árida faixa de terra está prestes a transformá-la numa das zonas mais ricas da América. Os nativos abandonam a sua condição de nómadas e tornam-se burgueses ricos, ao mesmo tempo que assistem ao “assalto” do homem branco às suas riquezas, concessões e terras, as mais das vezes por meios que escapam à legalidade. Proprietário de uma transportadora, homem particularmente conceituado na região e grande amigo dos Osage, William Hale faz uso da sua influência e reputação para deitar a mão à súbita riqueza que o cerca. Para tal serve-se do seu sobrinho Ernest Burkhart, convencendo-o a casar-se com Mollie, jovem mulher Osage cuja fragilidade devido à diabetes faz antever a sua morte precoce. Entretanto, são muitas as mortes que se vão registando entre os nativos e que ficam por explicar. A teia de cumplicidades alastra-se neste exercício malévolo de ganância e usurpação, até que uma investigação federal, tardia mas eficaz, vem repor a segurança e a ordem num território tomado pelo medo.

Da voracidade dos predadores das terras Osage às associações criminosas, do poder das armas ao poder maior e mais subtil do dinheiro, da ampla reflexão sobre o mito fundador ao mergulhar no âmago das suas muitas manifestações diretas e contraditórias, “Assassinos da Lua das Flores” revela-se um fresco que abraça, em genialidade e generosidade, a História dos Estados Unidos e daqueles que criaram (e distorceram) o Mito, trazendo ao de cima o que de pior se pode esconder no coração do ser humano. Altamente simbólico, o início do filme lembra a solenidade do “western”, mas também uma certa anarquia que são imagem de marca dos filmes de gangsters. Naqueles corpos banhados pelo petróleo que jorra do solo, abandonados numa dança improvisada, parece haver algo de Woodstock, mas também dos rituais orgiástico do anterior filme de Scorsese, “O Lobo de Wall Street”, os hippies a darem lugar aos yuppies, já com um histriónico Leonardo DiCaprio a animar as danças. Falando em DiCaprio, destaque para a composição da personagem Ernest, demonstrativa da sua versatilidade enquanto actor. Por seu lado, Robert De Niro faz o melhor uso do rosto vazio e do seu carisma inabalável, aproveitando ao máximo o peso dos anos. Um rei decadente e um coiote, como a personagem de DiCaprio é definida pela própria Mollie: os dois rostos mais conhecidos de duas fases da carreira de Scorsese, reunidos aqui pela primeira vez sob sua direcção.

Baseado em “The Killers of the Red Earth”, obra de não ficção do ensaísta e jornalista norte-americano David Grann, o filme encena uma história de extorsão, abuso e crime que se tornaram num dos mais marcantes emblemas do desenvolvimento predatório da nação americana. Apresentado sem filtros, o carácter repulsivo das personagens revela o quanto de ilusório pode abrigar-se no sonho, convidando a América e os americanos a olharem para si sem o escudo e o espelho distorcido do imaginário, do símbolo e da lenda. O registo épico de uma boa parte do cinema clássico americano é aqui completamente anulado, pondo em evidência a pequenez das personagens que deveriam compô-lo: O “rei” Hale é uma figura completamente repulsiva, desprovida da estatura dos grandes criminosos que animaram o género, enquanto a personagem interpretada por DiCaprio inspira um misto de asco e dor, principalmente quando percebemos o sentimento de amor genuíno que o liga à esposa, apesar de ter consciência do mal que lhe está a fazer. Os códigos morais do filme de gangster, os rituais do mundo do crime, revelam-se deliberadamente grotescos, enquanto a rapacidade de uma burguesia branca que mata e saqueia, consciente da sua impunidade substancial, se torna completamente transparente.

Martin Scorsese já nos tinha dito isto em “Gangs de Nova Iorque”, reiterou-o noutros termos no já citado “O Lobo de Wall Street”, e explicou-o de forma mais sistemática em “O Irlandês”: A história dos Estados Unidos, desde a sua fundação até aos nossos dias, é uma história de opressão, corrupção e sangue, a história de uma nação que se perpetuou - também graças à narrativa dos seus meios de comunicação, incluindo o cinema - na eliminação sistemática das culturas com as quais foi tendo contacto. Scorsese não poupa ninguém, nem mesmo os próprios Osage que enterraram cedo demais o cachimbo que vemos no prólogo, para (ingenuamente) abraçarem os rituais de vida do homem branco, dedicando-se a essa mesma divindade secular do dinheiro que aqui substitui completamente a inspiração espiritual que sustentava os seus princípios e a sua própria cultura. Mas Scorsese está plenamente consciente disso e, como provocação final, oferece um epílogo no qual a natureza fictícia do chamado sonho americano - e a sua redução a uma história ficcional prosaica - se torna completamente manifesta. Regressámos à terra, em suma, e fomos obrigados a olhar-nos e a ouvir-nos, sem mais filtros. É o cinema de Martin Scorsese a mover-se mais livremente do que nunca, consciente de que já não tem nada a provar a ninguém, mas sempre - e cada vez mais - faminto de coisas para dizer e de histórias para contar.

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