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quarta-feira, 17 de maio de 2023

LIVRO: "Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro"



LIVRO: “Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro”,
de Susana Moreira Marques
Edição | Madalena Alfaia
Ed. Companhia das Letras, Abril 2023


“Como estaria a minha avó fora de campo? Como se vestiria: com roupas que estavam na moda, ou não? Como estaria penteada: da maneira que se penteava em anos mais recentes, ou diferente? Como se comportaria fora de campo? Estaria nervosa? Estaria sentada, calmamente, a olhar para mim, ou em pé, mostrando ter alguma pressa, talvez porque tinha que me devolver aos meus pais ou porque tinha que ir fazer o jantar para o meu avô? Estaria silenciosa, discreta, como era seu costume, ou teria decidido fazer algum tipo de conversa com o fotógrafo? Estaria a dar-me instruções, reforçando as indicações do fotógrafo? Que ar teria ela no momento em que o fotógrafo apontava a câmara e disparava? Pareceria orgulhosa? Preocupada? Cansada? Esperançosa? Carinhosa? Tudo isso junto? O que esconderia a sua expressão, que ficou por registar? Que ficção seria possível criar a partir desse olhar?”

Antes do livro, um filme. Ou melhor, um documentário, realizado por Marta Pessoa em 2022 e intitulado “Um Nome Para o Que Sou”. Um mergulho no universo de Maria Lamas, tradutora e jornalista, feminista e activista política, autora de “As Mulheres do Meu País”, retrato minucioso da condição da mulher em Portugal nos anos 1940. O documentário é sobre o processo de escrita deste livro e, inevitavelmente, sobre as suas implicações, a denúncia vigorosa de um regime que promovia a imagem da “mulher dona de casa”, quando trabalhar fora de casa era a realidade de uma grande parte das mulheres portuguesas. Susana Moreira Marques escreveu os textos para o documentário (também é sua a voz que narra o próprio texto) e não se ficou por aqui. Às notas que foi tomando, acrescentou muitas outras já depois de o documentário estar pronto. Soube, desde o início, que as mulheres retratadas por Maria Lamas não eram mulheres distantes de outra época. A memória que delas conservava diziam-lhe directamente respeito. A si e à sua história. Também à das suas filhas. O resultado é este “Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro”. E é belíssimo.

Depois de uma breve nota explicativa, somos convidados a reter “algumas imagens para acompanharem a leitura”. São imagens de uma grande intimidade, que nos levam por estradas desertas onde os animais se passeiam à solta, nos sentam à lareira a olhar para as chamas nos momentos de silêncio ou nos fazem passar pelas mãos as imagens a preto e branco que temos em casa, em álbuns de família, e para as quais raramente olhamos. A intimidade faz-se presença em tudo: É Susana Moreira Marques a olhar-nos nos olhos e a contaminar-nos com os seus porquês. De repente cai-nos nas mãos um livro e tanto podemos ver nele um guia de viagem como uma bíblia, um manual como “um volume esotérico, um instrumento mágico, que dará acesso ao que há muito está desaparecido”. “As Mulheres do Meu País” leva Susana Moreira Marques a recuar a 1949, a uma altura em que a mãe está na barriga da avó. “A [minha] avó tem 23 anos. Está casada. Tem um filho de um ano. Anda com cargas à cabeça sem se desequilibrar do rio para as fábricas.” Sabe que a avó não está entre essas mulheres com quem Maria Lamas acaba de ir falar. Mas é esta avó que Susana Moreira Marques procura. E na qual se encontrará. E nós? Que sabemos nós das nossas avós? Do tempo das nossas avós?

“Talvez todas as viagens - no país ou fora do país - sejam feitas para termos a certeza de onde vimos.” A viagem faz-se de interrogações, dúvidas. “Mulher”, “escrava” ou “épico” são palavras recorrentes no livro de Maria Lamas e voltam a sê-lo com Susana Moreira Marques. Os gestos que uma observou - o modo como as mães seguram nos bebés, como as rapariguinhas pegam nas mãos das mais pequenas para as afastar dos perigos, como as mulheres põem as mãos nas ancas em vez de nos bolsos -, observa a outra três quartos de século depois, como “frames de um movimento contínuo”. Quando encontramos as “jornaleiras” na estação das castanhas, “o rosto muito perto da terra, as mãos que não param, o corpo que carrega o peso do que se apanhou”, percebemos que a diferença está no final da jorna, onde há “uma televisão para a qual voltar depois do dia inteiro curvadas sobre si mesmas.” Como memória de leitura, Susana Moreira Marques deixa-nos alguns sons, o correr da água nos caminhos, o toque dos sinos, as canções da infância cantadas por vozes envelhecidas, o soprar desimpedido do vento nos lugares de onde os incêndios levaram as folhagens das árvores. O ruído de virar as páginas de um livro. Deste livro, do qual fica a vontade de fazermos perguntas e a certeza de estarmos a olhar em frente ao olharmos para trás.

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