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quarta-feira, 3 de agosto de 2022

EXPOSIÇÃO DE PINTURA: "Elas"


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EXPOSIÇÃO DE PINTURA: “Elas”,
de Rosa Bela Cruz
Casa da Junta de São João - Polo de Capacitação e Inovação Social
09 Jul > 16 Set 2022


“No teu olhar a sombra do teu sorriso”. Profundamente inquietante, o quadro assim intitulado convoca as memórias que dele guardo, tão ricas de significado neste “eterno retorno” que se abre em amor e verdade. Hoje, como há cinco anos, é preso a esta mulher que me sinto, ao seu rosto no chão, às suas olheiras fundas, à sua expressão vazia. À sua beleza, mas também à sua imensa dor. Subjugado pela “sombra”, apenas posso tentar adivinhar o “sorriso” que lhe emoldurou o rosto, a vontade de sonhar, o sonho de amar, de ser feliz. No meu sentir, porém, são aqueles ombros caídos num corpo esvaziado de esperança que sobressaem, o olhar baixo onde encontro o medo e a mágoa. Entretanto o tempo passou. A mulher é a mesma, mas não o quadro. As pinceladas que a artista lhe acrescentou dão-me a certeza de uma vida sufocada. De um sofrer que se arrasta interminavelmente e que tem o sabor do sangue. Desse sangue rubro que se estende sobre a boca e o queixo, que me eriça a pele e me faz corar de vergonha ao sentir sobre mim o dedo acusador: “E tu, onde estiveste durante todo este tempo?”

Vertidos em harmonia e beleza, os quadros de Rosa Bela Cruz pedem-nos que rejeitemos as aparências e tomemos consciência da verdade que se insinua à nossa volta. Que, com a unha, raspemos à superfície e penetremos no mundo escondido destas mulheres, um mundo de abusos e de maus-tratos em contexto de violência doméstica. São gritos de alerta, estes quadros. Gritos em nome de todas as mulheres presas nas teias da manipulação e da coação, da difamação, da intimidação, da violência física e psicológica, e que a isso respondem com o seu conformismo e a sua mudez, com um encolher de ombros resignado e triste. Gritos que clamam que a violência doméstica não pode ser vista como uma fatalidade, um desígnio que a mulher deve, passivamente, aceitar. Gritos que trazem com eles os gritos das dezasseis mulheres mortas só na primeira metade deste ano, tantas como as verificadas ao longo de 2021. É isso que aqueles rostos nos recordam, gritando a uma só voz em torno de uma “noiva”, longo véu branco de brancas rosas pendentes, carregando em si as marcas de um calvário que só agora começa.

Talvez “Elas” seja tudo isto que acabo de descrever. Ou talvez não. Talvez a exposição possa ser vista pelo seu lado estritamente artístico, sem apreciações de outra espécie que não a perfeição do traço, a harmonia das cores, a arte da colagem que empresta “pele” aos rostos e textura aos cabelos, aos vestidos. Também nisso, Rosa Bela Cruz é exímia. Expondo uma vez mais na terra que a viu nascer, a artista dá-nos a ver um conjunto de trabalhos representativos do seu universo pictórico, no centro do qual vamos encontrar a mulher. É nela e no que representa que nos deixamos prender. A pomba que, muito disfarçadamente, cobre uns lábios, não foi parar ali por um simples capricho da artista. Há um sentido, uma causa para as coisas. Aqueles rostos contam histórias. Convidam-nos a descobrir quanta vergonha e quanta dor se abriga na sombra de um olhar. Mostram-nos o ventre onde cresce o fruto de um amor que talvez nunca tivesse chegado a existir. Abrigam sonhos e ilusões que se viram estilhaçadas na ameaça de um grito, na força de um murro, no frio da lâmina de uma faca. Só não vê isto quem não quer ver. Obrigado, Rosa Bela Cruz. Por “Elas”. Por mim.

1 comentário:

  1. Eu é que agradeço o modo como, em palavras, interpretou magnificamente o objectivo de vários dos meus quadros. Com Elas, estamos todos nós, homens e mulheres, que partilhamos a denúncia e não toleramos a violência exercida sobre qualquer ser humano. Neste caso concreto, as Mulheres. Elas.

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