LIVRO: “O Avesso da Pele”,
de Jeferson Tenório
Ed. Companhia das Letras, Abril de 2021
“(…) ‘Não chame a atenção dos brancos. Não fale alto em certos lugares, as pessoas se assustam quando um rapaz negro fala alto. Não ande por muito tempo atrás de uma pessoa branca, na rua. Não faça nenhum tipo de movimento brusco quando um policial te abordar. Nunca saia sem documentos. Não ande com quem não presta. Não seja um vagabundo, tenha sempre um emprego.’ Tudo isso passara anos reverberando em você. Como uma espécie de mantra. Um manual de sobrevivência.”
Antes de entrar propriamente na apreciação crítica a este livro, vale a pena reflectir no seguinte: É no Brasil que encontramos o maior número de mortes violentas do mundo. Mais do que na Índia ou na Síria, na Nigéria ou na Venezuela. A cada oito minutos acontece um homicídio naquele país, o equivalente a setenta mil mortos por ano, ou seja, 12% do total de registos em todo o planeta. Ditos assim, friamente, os números têm um cunho de mera estatística, escondendo o drama que se abate sobre cada tragédia individual. Com “O Avesso da Pele”, Jeferson Tenório parte do geral para o particular, fazendo de Pedro o narrador e de Henrique, seu pai, o grande protagonista desta história. Uma história que, no limite, nos lembra que a morte nem sempre é consequência de uma mera circunstância da vida, antes o resultado de políticas raciais e segregacionistas do Estado. Uma política que, no Brasil, persegue e mata homens negros e mulheres negras há séculos.
Vestindo de normalidade a personagem de Henrique, Jeferson Tenório faz questão de recuar duas gerações, lançando o leitor num turbilhão de emoções onde as palavras pobreza, precariedade e fome rimam com sobrevivência. Todas as “cidades maravilhosas” parecem sê-lo só para alguns. As vivências traumáticas surgem como que incrustadas no código genético das pessoas que povoam o livro, a violência doméstica é uma realidade sempre presente. Num cenário de gritos, impropérios e barafunda, a vida de Henrique pode ser comparada a um exercício magistral de funambulismo. Sobre o abismo, cada passo lento é uma conquista, cada dia um novo desafio, cada gesto um acto de resistência. Na raíz do problema, a cor da pele. O caminhar e ver as pessoas em volta recolherem as bolsas e as mochilas, o assédio sexual que se abate com mais força sobre uma pele menos negra, o olhar desapontado do entrevistador numa entrevista de emprego. O polícia que, de forma recorrente, olha para o cidadão negro na rua e vê nele o transgressor, o refractário, o contumaz.
O livro não acaba bem. Henrique morrerá de morte violenta às mãos da polícia, um verdadeiro fuzilamento, o seu corpo crivado de balas. Numa sociedade onde não há lugar a falhas, um gesto mal medido ditou a sua morte. Mas são as falhas do sistema que estão aqui em causa: “As pessoas que te mataram ainda estão soltas. E não sei por quanto tempo continuarão livres. Mas elas nunca saberão nada sobre o que você tinha antes da pele. Jamais saberão o que você carregava para além de uma ameaça.” Numa escrita elegante, subtil, repleta de apontamentos onde a emoção se sobrepõe à razão, Jeferson Tenório mostra-se particularmente oportuno ao contar-nos um pouco da história de todos os negros na actual sociedade brasileira, do risco real de serem fuzilados a cada dia que passa, da grande obra que é serem capazes de cair e constantemente se reerguerem. “Um corpo negro será sempre um corpo em risco”, diz, menos com a intenção de quem defende uma justiça de “olho por olho” e mais como a voz que clama por um sistema igualitário, justo e livre.
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