LIVRO: “Rapariga, Mulher, Outra”,
de Bernardine Evaristo
Ed. Elsinore, Setembro de 2020
“Shirley,
a sua amiga mais antiga, virá esta noite, desde a adolescência que não falha um espetáculo que ela faça, tem sido uma constante na sua vida desde que se conheceram no liceu, tinham onze anos, era a hora do almoço e ela estava sozinha no recreio, rodeada de meninas de uniforme verde, todas em animada algazarra, a saltar à corda ou a jogar à macaca ou à apanhada, e então Shirley, a única outra rapariga de pele escura em toda a escola, veio ter com ela
e ali ficou, parada, à sua frente”
Distribuídas por quatro capítulos, as vidas de doze personagens femininas vão-se interceptando e articulando entre si na perfeição, para nos oferecerem uma visão abrangente da história da mulher no Reino Unido, de finais do século XIX até aos nossos dias. Fintando cronologias, Bernardine Evaristo centra a sua atenção nos condicionalismos de ordem social com que as mulheres se depararam ao longo dos tempos, à medida que vai dissecando os factores históricos e políticos que se revelaram determinantes para a tão desejada emancipação. Aqui chegados, porém, não se julgue que é tempo de respirar de alívio. Há questões que teimam em persistir, de uma sociedade que se obstina em fechar-se à discussão dos verdadeiros problemas da mulher, aos fenómenos de género que criam entraves a si próprios ou aos fundamentalismos que minam os mais estimáveis propósitos e são verdadeiros tiros nos pés.
O que mais sobressai na escrita de Bernardine Evaristo é a forma subtil como, do nada, constrói as suas personagens e as agiganta, tornando-as arautos de temas incontornáveis como a secundarização do papel da mulher, o preconceito racial, o assédio sexual ou a violência doméstica. Sem aligeirar nunca o sentido da mensagem, a autora conquista-nos rapidamente ao socorrer-se de uma linguagem simples, visualmente apelativa e de enorme eficácia, na qual é impossível não encontrarmos pontos de contacto com as nossas próprias vivências. Está feito o caminho para olharmos em volta e percebermos os verdadeiros obstáculos com os quais a mulher continua a deparar-se. Junte-se ao rigor das composições uma boa dose de humor e uma pitada de cinismo e temos a essência do ser mulher: imensa de crer, infatigável de vontade, lutadora inigualável.
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